terça-feira, 26 de agosto de 2008

Jongos importantes como documentos históricos acerca da condição escrava, da Abolição e de seus desdobramentos

Faixas do CD Memória do Jongo; encarte do livro Memória do Jongo: As gravações históricas de Stanley J. Stein. Vassouras, 1949. LARA,Silvia Hunold e PACHECO,Gustavo (Orgs.). Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas, SP: CECULT, 2007.pp. 177-191.

2 (027) :

Diabo de bembo* [?] [...]

Ô, [...]

Não deixou eu vestir calça, [...]

Ô, [...]

Não deixou vestir camisa, [...]

Ô, [...]

Não me deixou botar cueca, [...]

Aê, [...]

Não me deixou vestir chapéu, [...]

*Dembo: cf. Kimbundu ndembu, “potentado, autoridade superior [que tem sobas (chefes) sob sua jurisdição”; umbundu, ndembo, “mulher principal do soba, rainha”.

3 (0:20):

Tava dormindo cangoma* me chamou

Levanta povo que o cativeiro já acabou

*Cangoma (n.b. angoma, o tambor maior, de tronco escavado e de um couro só, usado no jongo-caxambu): cf. Kik.-kim. ngoma e umb. ongoma, “tambor” (...)

4(0:18):

Eu pisei na pedra* a pedra balanceou

O mundo tava torto rainha endireitou

Pisei na pedra a pedra balanceou

Mundo tava torto rainha endireitou

* Seg. Stein, Vassouras (ed. br.), p. 302: “Jongueiros recorreram aos acontecimentos de 13 de maio para inspiração, referindo-se à atitude vacilante do Imperador (‘pedra’) em relação à abolição, elogiando o ato de sua filha (‘rainha’): Eu pisei na pedra, pedra balanceou/ Mundo ‘tava torto, rainha endireitou”.

5(0:20): *

Não me deu banco pra mim sentar

Dona Rainha me deu cama,

não me deu banco pra me sentar

Um banco pra mim sentar

Dona Rainha me deu cama não me

Deu banco pra me sentar, ô iaiá

* Cf. Stein, pp. 304-5: “Correu um boato nos primeiros dias após a abolição acerca da distribuição de pequenos terrenos aos ex-escravos, mas nada jamais se materializou, e os libertos ‘ficaram quietos’, de acordo com um deles. No entanto, essa esperança não concretizada foi expressa em jongos de caxambu, disfarçados na metáfora amargurada, manifestada através da tradição africana e da servitude ao negro brasileiro: Ahi, não deu banco p’ra nos sentar/ Dona Rainha me deu cama, não deu banco p’ra me sentar”.

13(0:13): *

Ô ô, com tanto pau no mato

Embaúba é coroné

Com tanto pau no mato, ê ê

Com tanto pau no mato

Embaúba coroné

* Cf. Stein, p.248: “O jongo seguinte acerca da árvore embaúba e do coronel fazendeiro tipifica o aspecto de duplo sentido nos jongos: Com tanto pau no mato/ Embaúba é coronel. De acordo com um ex-escravo, a embaúba era uma árvore comum, inútil por ser podre por dentro. Muitos fazendeiros eram conhecidos como coronéis porque ocupavam esse posto na Guarda Nacional. Combinando os dois elementos, embaúba e coronel, os escravos produziam o superficialmente inócuo, mas sarcástico comentário.”

14(0:23): *

No tempo de cativeiro

Aturava muito desaforo

Levantava de manhã cedo

Com cara limpa levo o couro, ai

Agora quero ver o cidadão

Que grita no alto do morro

Vai-se Cristo, seu moço

Seu negro agora tá forro

*Stein, p.303: “Amargura, resignação e desforra apareceram em outro verso e refletem como os escravos se ressentiam profundamente da subserviência imposta pela autoridade do senhor: No tempo do cativeiro, aturava muito desaforo/ Eu levantava de manhã cedo, com cara limpa levo o couro. / Agora quero ver o cidadão que grita no alto do morro/ ‘Vas Christo’, seu moço, esta forro seu Negro agora”.

18(0:14):

Oi, soldado

Ai, quando é tempo de guerra

Dia inteiro tá no campo

Ou de noite sentinela, soldado

35(0:18):*

Que correntinha tão bonita,

Sá Dona, auê

Para que correntinha tá no pé,

Sá Dona

Que correntinha tão bonita

Sá Dona, auê

Para que correntinha tá no pé,

Sá Dona, auê

* Cf. Stein, p.172: “O canarinho tão bonitinho, que está preso na gaiola/ P’ra que correntinha está no pé, p’ra quê?”. Stein sugere que este jongo pode ter sido inspirado pelo trabalho em grupo de escravos tidos como “fujões” e acorrentados.

58(0:21)

Ô ô, [...], congonha*

Congonha é que mata homem, é, congonha

[...], congonha

Congonha é que mata homem, é, congonha

* Congonha: aqui, provavelmente “aguardente de cana; cachaça”.

59(0:18):

Pisei na pedra a pedra balanceou

Falou mal de rainha tá me fazendo falsidade

Pisei na pedra a pedra balanceou

Falou mal da rainha tá me fazendo falsidade

60(0:16):

Com tanta fava na horta

Canguru* tá com fome

Oi, com tanta fava na horta

Canguru tá com fome

Com tanta fava na horta

Canguru tá com fome, gente

* Canguru: cf. Kik./kim. ngulu, umb. ongulu “porco”

68(1:02) *

Pai João, Pai João

Preto não mente não

Pai João, Pai João

Preto não mente não

Sou preto véio mas não sou dessa canaia

Meu peito tem três medaia que eu ganhei no Paraguai

Quando eu fiz a guerra dos Canudo

Pra mecê no fim de tudo me chamar de Pai João

Sou preto véio mas sou um dos veterano

Que ajudou seu Floriano a ganhar Vileganhão**

Pai João, Pai João

Preto não mente não

Pai João, Pai João

Preto não mente não

Deixe de bobagem, garotagem e malandragem,

Não podes contar vantagem

Sou preto de opinião

* Eis a letra original da toada composta por Almirante e Luiz Peixoto e gravada por Gastão Fomenti: “Sou preto velho/ Mas não sou dessa canaia/ Meu peito tem três medaia/ Que ganhei no Paraguai/ Comi na faca/ Mais de trinta cangaceiro/ E o Antônio Conselheiro/ Teve quase vai-não-vai/ Pai João, Pai João/ Tás contando vantagem/ Nego não mente não/ Dexa dessas bobagem garotagem/ Que eu sou preto de coragem/ Sou preto de condição/ Sou preto velho/ Mas sou um dos veterano/ Que ajudou Fuloriano/ A tomar Vileganhão/ Sou preto velho/ Mas agora eu vou ser franco/ Eu tô com os cabelo branco/ De tanta desilusão/ Quando era moço/ Fiz a Guerra de Canudo/ Pra mecê no fim de tudo/ Me chamar de Pai João”.

** Trata-se provavelmente de uma referência a um episódio da Revolta da Armada, em 1894, quando as forças leais ao então Presidente Floriano Peixoto enfrentaram e venceram rebeldes entrincheirados na Fortaleza de Villegaignon, na Baía de Guanabara

74(2:04)

É que sabe combinar

[...] sinhá rainha é que soube combinar

Sinhá rainha é que soube combinar

Pegou na pena de ouro

E jogou no meio do mar

Treze de maio a corrente rebentou

No dia treze de maio

A corrente rebentou

A corrente rebentou

Estremeceu [...]

No coração do senhor

A pedra balanceou

Olha eu pisei na pedra

E a pedra balanceou

Pisei na pedra

E a pedra balanceou

Pois o mundo tava torto

Sinhá rainha endireitou

Ai ser peneira na panhação de café

Mas eu queria ser peneira

Na panhação de café

Na panhação de café

Pra andar dependurado

Nas cadeiras das mulher

E no tempo da escravidão

Eu queria que eu chegasse

No tempo da escravidão

Que eu chegasse

No tempo da escravidão

Eu queria ser [...]

Que eu matava o meu patrão

Liberdade foi a rainha quem me deu

Liberdade liberdade

Foi a rainha quem me deu

Ai foi a rainha quem me deu

Com sua pena de ouro

Ela mesma escreveu

Entre nós não há perigo

Tu é bom eu também sou

E entre nós não há perigo

Eu também sou

Entre nós não há perigo

Sentimento que eu tenho

De não saber mais verso antigo

A hipótese acerca da rebeldia escrava como fator da Abolição e seu questionamento

Rebeldia escrava ==> medo ==> Abolição ?

A Hipótese:

“Na virada das décadas de 1860 e 1870, os relatórios dos chefes de polícia dirigidos aos presidentes de província expressam uma crescente preocupação com as lutas dos escravos. Individualmente ou em pequenos grupos, de forma premeditada ou não, eles se revoltavam e matavam, e ao invés de simplesmente fugir, como era costumeiro (...) começaram a se apresentar espontaneamente à polícia, como se julgassem de seu direito matar quem os oprimia. (...)

“ao longo da década de 1870, grande parte das atenções das autoridades policiais convergia para a questão dos crimes diários de escravos contra senhores, administradores e respectivas famílias.

É possível que as relações sempre conflituosas entre senhores e escravos estivessem agora a vivenciar um novo momento histórico, com o espaço de produção tornando-se palco privilegiado das revoltas individuais e coletivas dos negros escravizados. Isto quer dizer que a resistência escrava estaria se concretizando cada vez mais no próprio lugar de trabalho (no eito e no interior das moradias dos senhores)” (p.181)

“Ao final da década [de 1870], o chefe de polícia (...) queixava-se de que ‘certos meios de intimidação’, à margem da lei, não produziam grandes resultados (...) e enquanto isso, os crimes continuavam a se reproduzir ‘com frequência’ (...) ‘Com uma população superior a 150.000 almas a prudência deve aconselhar medidas que desarmem o braço homicida do escravo’ (p.199)

“Enquanto os anos 70 revelam-se marcados pelos crimes cometidos individualmente ou em pequenos grupos de escravos, os primeiros anos da década de 80 primam pelas revoltas coletivas ou insurreições, registradas em fazendas de diversos municípios” (p.199)

“dificilmente alguma medida disciplinar seria capaz de impedir a recrudescência da violência naqueles anos tormentosos de um regime de trabalho já bastante desacreditado e que cada vez mais perdia seus adeptos para as fileiras emancipacionistas e abolicionistas.

Em 1881 começam a aparecer sinais mais insistentes de apoio popular à causa dos escravos (...) Em 1881 deu-se ‘uma malograda tentativa de insurreição’ de escravos em alguns municípios do norte da província (...) E esta tentativa teria sido insuflada por elementos vindos do Rio de Janeiro.” (p.200)

“Aproveitando-se deste debate nacional sobre trabalho e nacionalidade, que em meados da década de 1860 começa a produzir as imagens contrapostas do negro incapaz/ migrante capaz, os políticos paulistas tratam de praticar o projeto imigrantista. Não o fizeram, porém, por uma questão de pura adesão aos ideais racistas ou às modernas teorias científicas raciais trazidas na bagagem de diversos jovens de elite que faziam seus cursos superiores na Europa. Longe de constituir uma mera importação de idéias, esta adesão ao racismo científico transcorreu na medida mesma da exacerbação das lutas entre escravos e senhores.

A preocupação com o aumento ‘avassalador’ dos crimes e revoltas de escravos por toda a província de São Paulo constituiu um dos grandes temas de debate dos deputados provinciais que nos anos 70 confrontaram-se com o problema da próxima extinção da escravatura.” (p.255)

“Ao mesmo tempo, os parlamentares provinciais atiraram-se cada vez mais à formulação de projetos imigrantistas, apresentados com esmeradas argumentações de cunho racial em favor do trabalhador branco, ou quando muito em apoio à vinda temporária de colonos chineses, que abririam caminho para a imigração tão ansiada de membros da raça superior ariana.” (p.256)

“A partir de meados de 1887, com as fugas massivas de escravos e maior atuação dos abolicionistas, começam também as manifestações de negros nas ruas da capital e cidades do interior. Seus protestos, bem como a ação violenta de grupos armados a serviço dos proprietários escravistas, indicam o nível de radicalização a que haviam chegado tais conflitos, abertos e generalizados em toda a província.” (p.257)

Fonte: AZEVEDO,Celia M.Marinho de. Onda negra, medo branco; o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

A refutação ?:

Críticas à associação entre rebeldia negra e escravidão em:

CARDOSO,Ciro F. S. (Org.) Escravidão e Abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. pp.89-90.

89 “estando a rebeldia negra presente desde o início da escravidão de africanos e sendo, assim, traço estrutural da própria sociedade escravista, a demonstração de que possa ter tido um peso específico considerável no processo da abolição teria por força de seguir um de dois caminhos:

1) provar uma incidência quantitativamente maior de movimentos em 1850-1888, ou alternativamente, diferenças radicais no caráter desses movimentos;

2) ou mostrar como, nas novas condições inauguradas com a abolição do tráfico africano em 1850, mesmo uma incidência similar à do passado teria um peso maior na fragilização e crise do sistema escravista e, portanto, em sua superação.

90 Continuo achando que uma demonstração de algum destes tipos está ainda por ser feita de forma metodologicamente aceitável e, portanto, convincente.”

Trechos de O Abolicionismo, 1883, de Joaquim Nabuco

Texto : Trechos do capítulo XIII da obra O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco

Natureza e data do texto: Joaquim Nabuco (1849-1910) foi uma figura política das mais importantes do Império e um dos mais destacados abolicionistas da corrente moderada. Neste livro, defende a abolição por ver na escravidão um obstáculo ao desenvolvimento da nação, vendo nela a origem dos principais problemas brasileiros: demográficos, econômicos, políticos e morais. O capítulo XIII é um dos mais contundentes e nele ficam explícitas as concepções raciais (senão racistas) de um dos mais importantes abolicionistas brasileiros.

XIII - INFLUÊNCIA DA ESCRAVIDÃO SOBRE A NACIONALIDADE

“(Com a escravidão) nunca o Brasil aperfeiçoará as raças existentes”.

José Bonifácio

O Brasil, como é sabido, é um dos mais vastos países do globo, tendo uma área de mais de oito milhões de quilômetros quadrados; mas esse território em grandíssima parte nunca explorado, e, na sua porção conhecida, acha-se esparsamente povoado. A população nacional é calculada entre dez e doze milhões; não há porém base séria para se a computar, a não ser que se acredite nas listas de recenseamento apuradas em 1876, listas e apuração que espantariam a qualquer principiante de estatística. Sejam, porém, dez ou doze milhões, essa população na sua maior parte descende de escravos, e por isso a escravidão atua sobre ela como herança do berço.

Quando os primeiros africanos foram importados no Brasil, não pensaram os principais habitantes - é verdade que se o pensassem, isso não os impediria de fazê-lo, porque não tinham o patriotismo brasileiro - que preparavam para o futuro um povo composto na sua maioria de descendentes de escravos. Ainda hoje, muita gente acredita que cem ou duzentos mil chins seria um fato sem conseqüências étnicas e sociais importantes, mesmo depois de cinco ou seis gerações. O principal efeito da escravidão sobre a nossa população foi, assim, africanizá-la, saturá-la de sangue preto, como o principal efeito de qualquer empresa de imigração da China seria mongolizá-la, saturá-la de sangue amarelo.

Chamada para a escravidão, a raça negra, só pelo fato de viver e propagar-se, foi-se tornando um elemento cada vez mais considerável da população. (...) Foi essa a primeira vingança das vítimas. Cada ventre escravo dava ao senhor três ou quatro crias que ele reduzia dinheiro; essas por sua vez multiplicavam-se, e assim os vícios do sangue africano acabavam por entrar na circulação geral do país.

Se, multiplicando-se a raça negra sem nenhum do seus cruzamento, se multiplicasse a raça branca por outro lado mais rapidamente, como nos Estados Unidos, o problema das raças seria outro, muito diverso - talvez mais sério, e quem sabe se solúvel somente pela expulsão da mais fraca e inferior por incompatíveis uma com a outra; mas isso não se deu no Brasil. As duas raças misturaram-se e confundiram-se; as combinações mais variadas dos elementos de cada uma tiveram lugar, e a esses juntaram-se os de uma terceira, a dos aborígenes. Das três principais correntes de sangue que se confundiram nas nossas veias - o português, o africano e o indígena - a escravidão viciou sobretudo os dois primeiros. Temos aí um primeiro efeito sobre a população: o cruzamento dos caracteres do raça negra com os da branca, tais como se apresentam na escravidão a mistura da degradação servil de uma com a imperiosidade brutal da outra.

(...)

A população européia era insignificante para ocupar essas ilimitadas extensões de terra, cuja fecundidade a tentava. Estando a África nas mãos de Portugal, começou então o povoamento da América por negros; lançou-se, por assim dizer, uma ponte entre a África e o Brasil, pela qual passaram milhões de africanos, e estendeu-se o hábitat da raça negra das margens do Congo e do Zambeze às do São Francisco e do Paraíba do Sul.

(...)

Pretende um dos mais eminentes espíritos de Portugal que “a escravidão dos negros foi o duro preço da colonização da América, porque, sem ela, o Brasil não se teria tornado no que vemos”.(2) Isso é exato, “sem ela o Brasil não se teria tornado no que vemos”; mas esse preço quem o pagou, e está pagando, não foi Portugal, fomos nós; e esse preços a todos os respeitos é duro demais, e caro demais, para o desenvolvimento inorgânico, artificial, e extenuante que tivemos. A africanização do Brasil pela escravidão é uma nódoa que a mãe pátria imprimiu na sua própria face, na sua língua, e na sua única obra nacional verdadeiramente duradoura que conseguiu fundar. O eminente autor daquela frase é o próprio que nos descreve o que eram as carregações do tráfico:

Quando o navio chegava ao porto de destino - uma praia deserta e afastada - o carregamento desembarcava; e, à luz clara do sol dos trópicos, aparecia uma coluna de esqueletos cheios de pústulas, com o ventre protuberante, as rótulas chagadas, a pele rasgada, comidos de bichos, com o ar parvo e esgazeado dos idiotas. Muitos não se tinham em pé: tropeçavam, caíam e eram levados aos ombros como fardos.

Não é com tais elementos que se vivifica moralmente uma nação.

(...)

A história da escravidão africana na América é um abismo de degradação e miséria que se não pode sondar, e, infelizmente, essa é a história do crescimento do Brasil. No ponto a que chegamos, olhando para o passado, nós, brasileiros, descendentes ou da raça que escreveu essa triste página da humanidade, ou da raça com cujo sangue ela foi escrita, ou da fusão de uma e de outra, não devemos perder tempo a envergonhar-nos desse longo passado que não podemos lavar, dessa hereditariedade que não há como repelir. Devemos fazer convergir todos os nossos esforços para o fim de eliminar a escravidão do nosso organismo, de forma que essa fatalidade nacional diminua em nós e se transmita às gerações futuras, já mais apagada, rudimentar e atrofiada.

Muitas das influências da escravidão podem ser atribuídas à raça negra, ao seu desenvolvimento mental atrasado, aos seus instintos bárbaros ainda, às suas superstições grosseiras. A fusão do catolicismo, tal como o apresentava ao nosso povo o fanatismo dos missionários, com a feitiçaria africana, influência ativa e extensa nas camadas inferiores, intelectualmente falando, da nossa população, e que pela ama-de-leite, pelos contatos da escravidão doméstica, chegou até aos mais notáveis dos nossos homens; a ação de doenças africanas sobre a constituição física de parte do nosso povo; a corrupção da língua, das maneiras sociais. da educação e outros tantos efeitos resultantes do cruzamento com uma raça num período mais atrasado de desenvolvimento; podem ser consideradas isoladamente do cativeiro. Mas, ainda mesmo no que seja mais característico dos africanos importados, pode afirmar-se que, introduzidos no Brasil, em um período no qual não se desse o fanatismo religioso, a cobiça, independente das leis, a escassez da população aclimada, e sobretudo a escravidão, doméstica e pessoal, o cruzamento entre brancos e negros não teria sido acompanhado do abastardamento da raça mais adiantada pela mais atrasada, mas de gradual elevação da última.

Não pode, para concluir, ser objeto de dúvida que a escravidão transportou da África para o Brasil mais de dois milhões de africanos; que, pelo interesse do senhor na produção do ventre escravo, ela favoreceu quanto pôde a fecundidade das mulheres negras; que os descendentes dessa população formam pelo menos dois terços do nosso povo atual; que durante três séculos a escravidão, operando sobre milhões de indivíduos, em grande parte desse período sobre a maioria da população nacional, impediu o aparecimento regular da família nas camadas fundamentais do país; reduziu a procriação humana a um interesse venal dos senhores; manteve toda aquela massa pensante em estado puramente animal; não a alimentou, não a vestiu suficientemente; roubou-lhe a suas economias, e nunca lhe pagou os seus salários; deixou-a cobrir-se de doenças, e morrer ao abandono; tornou impossíveis para ela hábitos de previdência, de trabalho voluntário, de responsabilidade própria, de dignidade pessoal; fez dela o jogo de todas as paixões baixas, de todos os caprichos sensuais, de todas as vinditas cruéis de um outra raça;”

(...)

Fonte:

NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo : Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro da Folha de São Paulo).

Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo

Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Esquema da aula - A questão racial e a Abolição

AULA QUESTÃO RACIAL e ABOLIÇÃO

0. Abertura: Pisei na pedra (faixa 1 CD Jongo da Serrinha e p. 12 Texto 008 Apostila)

- p.7, texto 006 Apostila – A festa da Abolição

1. Questão Racial

1.1. Os viajantes e o racismo científico:

Texto 009 Apostila p.14 – Passagens sobre a questão racial,

sobretudo Natureza e data do texto 009-B,

texto 009-A O esquema racial de Gobineau,

texto 009-C Trechos do artigo L’émigration au Brésil, de 1873

texto 009-D Louis Agassiz e a ‘deterioração decorrente do amálgama das raças’

1.2. Limites do nosso abolicionismo

Texto 005, p.6 As duas correntes do movimento abolicionista

Texto , Trechos do capítulo XIII de O Abolicionismo de Joaquim Nabuco

1.3. A permanência da questão racial após a Abolição

Texto 010, p.18 – A vida no cortiço, sobretudo p.21 (Rita Baiana e os trópicos) e pp. 27-8, cap. XIII, sobre o cortiço como um “viveiro de larvas sensuais”

2. A Abolição

2.1. Dimensões macro-históricas e mundiais

- Aparecimento do capitalismo como sistema dominante em termos mundiais

- Processo de deslegitimação da escravidão a partir de meados do século XVIII

- Inglaterra contra as permanências de uma época pré-capitalista

- Sucessivos tratados arrancados a Portugal: 1810, 1815 e 1817, e ao Brasil: 1826 ==> lei 1831 (um ano após o combinado) e por fim Bill Aberdeen 1845 (direito de aprisionar qualquer navio negreiro e de julgar os traficantes no Almirantado Britânico) ==> Lei Eusébio de Queirós, 1850

- C. 1840, a Inglaterra controlava (i.e. firmas britânicas):

50% das exportações de café e açúcar

60% das exportações de algodão

Bancos ingleses eram credores do Estado brasileiro (desde a Independência quando o Brasil assumira uma dívida portuguesa em troca do reconhecimento da nossa soberania pelos ingleses)

- Pressão política internacional e isolamento até nas Américas (escravidão abolida em Cuba um ano antes)

- limites da influência externa: entre o início da pressão inglesa para abolir o tráfico (1808) e a extinção (1850) passaram-se 42 anos.

2.2. Dinâmica interna:

- Consequências da extinção do tráfico africano (1850):

* aumento do tráfico interno (ou interprovincial): desequilíbrio entre as províncias (cisão entre o Nordeste e as províncias cafeeiras è ameaça de secessão após votação da Lei do Ventre Livre em 1871), concentração social da propriedade escrava (corroendo as bases de apoio do escravismo e reforçando o movimento abolicionista), escravos trazidos mais dispostos a iniciar ações individuais ou coletivas

- Campanha abolicionista, sobretudo a partir de 1870 quando se intensificam:

-

· Ações cíveis de liberdade, corriqueiras a partir da década de 1860 (e.g. Liberata)

· pronunciamentos militares

· mobilizações populares

· Guerra do Paraguai modifica o Exército brasileiro que se recusa a perseguir os escravos (texto 004, p.6 – Militares recusam-se a perseguir escravos fugidos (1887)), o que fortalece a campanha e incentiva a fuga de escravos

- Rebeldia escrava ==> medo ==> Abolição ? A hipótese e sua refutação ?

domingo, 24 de agosto de 2008

Vídeo Memórias do Cativeiro

Dados retirados do site do LABHOI: http://www.historia.uff.br/labhoi , onde há links para para ver o vídeo na íntegra.


Memórias do Cativeiro (filme documentário, historiográfico e educativo, 40’).
Produção: LABHOI/UFF (2005) Apoio: CNPq, FAPERJ.
Coordenação Geral e Roteiro: Hebe Mattos
Direção e Montagem: Guilherme Fernandez e Isabel Castro.
Direção Acadêmica: Hebe Mattos e Martha Abreu, com a colaboração de Carlos Eduardo Costa, Fernanda Thomaz e Thiago Campos Pessoa.
Baseado no livro “Memórias do Cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição” de Ana Lugão Rios e Hebe Mattos (RJ: Civilização Brasileira, 2005).


O filme Memórias do Cativeiro é um produto cultural sem fins lucrativos do LABHOI-UFF desenvolvido com base nos depoimentos orais de camponeses negros nascidos nas antigas áreas cafeeiras do sudeste brasileiro nas primeiras décadas do século XX, descendentes de antigos escravos chegados da África na região durante a primeira metade do século XIX, gravados por diferentes pesquisadores em fita K7 entre 1988 e 1998 e depositados no arquivo oral do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (LABHOI/UFF). O filme edita o som dos depoimentos a partir de coincidências narrativas sobre a memória da escravidão e sobre a experiência familiar dos depoentes ao longo do século XX e entrecruza seus significados com imagens de época da escravidão e da abolição no sudeste cafeeiro. A intertextualidade entre estes dois suportes de memória, o depoimento e a imagem de época, compõe a base do roteiro que orientou a confecção do filme. A esta base, associamos filmagens de novas entrevistas com os depoentes moradores no Quilombo São José, no município de Valença/RJ e de lugares de memória da cultura material e imaterial ligada ao “tempo do cativeiro” e à cultura do café no Vale do Paraíba (fazendas, senzalas, apresentações de jongo etc). O resultado é um filme que associa cinema de arquivo com a linguagem do filme documentário, para contar a história da última geração de escravos do mundo rural fluminense e dos caminhos de seus descendentes ao longo do século XX, bem como da força da memória familiar e da cultura negra entre eles. O filme tem obtido excelente receptividade, especialmente de professores do ensino médio e fundamental preocupados com a implementação do ensino de história da África e da cultura afro-brasileira.

O dia de trabalho dos escravos numa fazenda de café c. 1850

O dia de trabalho dos escravos numa fazenda de café c. 1850

STEIN,Stanley J. Vassouras: a Brazilian Cofee County 1850-1900. Cambridge: Harvard University Press, 1957. pp. 161-164

SLAVE life on the average Vassouras plantation of approximately eighty to one hundred slaves was regulated by the needs of coffee agriculture, the maintenance of sede and senzallas, and the processing of coffee and subsistence food-stuffs. Since the supply of slaves was never adequate for the needs of the plantation either in its period of growth, prosperity, or decline, the slaves' work day was a long one begun before dawn and often ending many hours after the abrupt sunset of the Parahyba plateau. 1

Cooks arose before sunup to light fires beneath iron cauldrons; soon the smell of coffee, molasses, and boiled corn meal floated from the outdoor shed. The sun had not yet appeared when the overseer or one of his Negro drivers 2 strode to a
corner of the terreiro and reached for the tongue of a wide-mouthed bell. The tolling of the cast-iron bell, or sometimes a blast from a cowhorn or the beat of a drum, reverberated across the terreiro and entered the tiny cubicles of slave couples and the separated, crowded tarimbas, or dormitories, of unmarried slaves. Awakening from their five- to eight-hour slumber, they dragged themselves from beds of planks softened with woven fiber mats; field hands reached for hoes and bill-hooks lying under the eaves. At the large faucet near the senzallas, they splashed water over their heads and faces,

162: moistening and rubbing arms, legs, and ankles. Tardy slaves might appear at the door of senzallas muttering the slave-composed jongo which mocked the overseer ringing the bell:

That devil of a bembo taunted me
No time to button my shirt, that devil of a bembo.

Now, as the terreiro slowly filled with slaves, some standing in line and others squatting, 3 awaiting the morning reza or prayer, the senhor appeared on the veranda of the main house. "One slave recited the reza which the others repeated," recalled an ex-slave. Hats were removed and there was heard
a "Praised-be-Our-Master-Jesus-Christ" to which some slaves repeated a blurred "Our-Master-Jesus-Christ," others an abbreviated "Kist." 4 From the master on the veranda came the reply: "May-He-always-be-praised." The overseer called
the roll; if a slave did not respond after two calls, the overseer hustled into the senzallas to get him or her. When orders for the day had been given, directing the various gangs to work on certain coffee-covered hills, slaves and drivers shuffled to the nearby slave kitchen for coffee and corn bread.

The first signs of dawn brightened the sky as slaves separated to their work. A few went into the main house; most merely placed the long hoe handles on their shoulders and, old and young, men and women, moved off to the almost year- round job of weeding with drivers following to check stragglers. Mothers bore nursing youngsters in small woven baskets (jacás) on their backs or carried them astraddle one hip. Those from four to seven trudged with their mothers, those from nine to fifteen close by. If coffee hills to be worked were far from the
main buildings, food for the two meals furnished in the field went along--either in a two-team ox-cart which slaves called a maxambomba, or in iron kettles swinging on long sticks, or in wicker baskets or two-eared wooden pans (gamellas) on long
boards carried on male slaves' shoulders. A few slaves carried their own supplementary articles of food in small cloth bags. Scattered throughout the field were shelters of four posts

163: and a grass roof. Here, at the foot of the hills where coffee trees marched up steep slopes, the field slaves split into smaller gangs. Old men and women formed a gang working close to the rancho; women formed another; the men or young bucks (rapaziada nova), a third. Leaving the moleques and little girls to play near the cook and assistants in the rancho, they began the day's work. As the sun grew stronger, men removed their shirts; hoes rose and fell slowly as slaves inched up the steep slopes. Under the gang labor system of corte e beirada used in
weeding, the best hands were spread out on the flanks, cortador and contra-cortador on one, beirador and contra-beirador on the other. These four lead-row men were faster working pace-setters, serving as examples for slower workers sandwiched between them. When a coffee row (carreira) ended abruptly due to a fold in the slope, the slave now without a row shouted
to his overseer "Throw another row for the middle" or "We need another row"; a feitor passed on the information to the flanking lead-row man who moved into the next row giving the slave who had first shouted a new row to hoe. Thus lead-
row men always boxed-in the weeding gang.

Slave gangs often worked within singing distance of each other and to give rhythm to their hoe strokes and pass comment on the circumscribed world in which they lived and worked-- their own foibles, and those of their master, overseers, and slave drivers--the master-singer (mestre cantor) of one gang would break into the first "verse" of a song in riddle form, a jongo. His gang would chorus the second line of the verse, then weed rhythmically while the master-singer of the nearby gang tried to decipher (desafiar) the riddle presented. An ex-slave, still known for his skill at making jongos, informed that "Mestre tapped the ground with his hoe, others listened while he sang. Then they replied." He added that if the singing was not good the day's work went badly. Jongos sung in African tongues were called quimzumba; those in Portuguese, more common as older Africans diminished in the labor force, visaría. Stopping
here and there to "give a lick" (lambada) of the lash to slow slaves, two slave drivers usually supervised the gangs by criss-crossing the vertical coffee rows on the slope and shouting

164: "Come on, come on"; but if surveillance slackened, gang laborers seized the chance to slow down while men and women slaves lighted pipes or leaned on their hoes momentarily to wipe sweat away. To rationalize their desire to resist the slave drivers' whips and shouts, a story developed that an older, slower slave should never be passed in his coffee row. For the aged slave could throw his belt ahead into the younger man's row and the youngster would be bitten by a snake when he reached the belt. The overseer or the master himself, in white clothes and riding boots, might ride through the groves for a quick look. Alert slaves, feigning to peer at the hot sun, "spiced their words" to comment in a loud voice "Look at that red-hot sun" or intermixed African words common to slave
vocabulary with Portuguese as in "Ngoma is on the way" to warn their fellow slaves (parceiros), who quickly set to work industriously. When the driver noted the approaching planter, he commanded the gang "Give praise," to which slaves stood erect, eager for the brief respite, removed their hats or touched
hands to forehead, and responded "Vas Christo." Closing the ritual greeting, the senhor too removed his hat, spoke his "May He always be praised" and rode on. Immediately the industrious pace slackened. 5

To shouts of "lunch, lunch" or more horn blasts coming from the rancho around 10 A.M., slave parceiros and drivers descended. At the shaded rancho they filed past the cook and his assistants, extending bowls or cuías of gourds split in
two. On more prosperous fazendas, slaves might have tin plates. Into these food was piled; drivers and a respected or favored slave would eat to one side while the rest sat or sprawled on the ground. Mothers used the rest to nurse their babies. A half hour later the turma was ordered back to the sun-baked
hillsides. At one P.M. came a short break for coffee to which slaves often added the second half of the corn meal cake served at lunch. On cold or wet days, small cups of cachaça distilled from the plantation's sugar cane replaced coffee. Some ex-slaves

164: reported that fazendeiros often ordered drivers to deliver the cachaça to the slaves in a cup while they worked, to eliminate a break. Janta or supper came at four P.M. and work was resumed until nightfall when to drivers' shouts of "Let's quit" (vamos largar o serviç;o) the slave gangs tramped back to the sede.
Zaluar, the romantic Portuguese who visited Vassouras, wrote of the return from the fields: "The solemn evening hour. From afar, the fazenda's bell tolls Ave-Maria. (From hilltops fall the gray shadows of night while a few stars begin to flicker in the
sky). . . From the hill descend the taciturn driver and in front, the slaves, as they return home." Once more the slaves lined up for rollcall on the terreiro where the field hands encountered their slave companions who worked at the plantation center (sede). 6

Esquema do texto 2: Carvalho 2001 - Introdução e capítulo 1

CARVALHO 2001 Esquema do texto

  1. Autor
  2. Obra
  3. Estrutura do texto
  4. Objetivo do texto
  5. Palavras-chave
  6. Métodos
  7. Fontes utilizadas
  8. Conclusões do texto
  9. Questões e críticas
  10. Outras leituras recomendadas

1. Autor: José Murilo de Carvalho (1939-), nascido em Minas Gerais, PhD em Ciência Política pela Universidade de Stanford; já lecionou em várias universidades estrangeiras (Londres, Oxford, Princeton, Leiden, Paris) foi prof. do IUPERJ e pesquisador da Casa de Rui Barbosa; atualmente é prof. Titular do Depto. História da UFRJ desde 1985.

Principais obras:

- A escola de minas de Ouro Preto: o peso da glória (1978)

- A construção da ordem: a elite política imperial (1980, 1996)

- Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (Companhia das Letras, 1987)

- Teatro de sombras (1988, 1996)

- A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil (Companhia das Letras, 1990)

- A cidadania no Brasil: o longo caminho (Civilização Brasileira, 2001)

O autor é um cientista político de formação, e a pesquisa histórica que desenvolveu foi sempre em torno da questão do funcionamento do sistema político brasileiro, inicialmente no período imperial e, a partir de 1987, tratando do período inicial da República. Não poderíamos dizer que esteja preso a uma determinada corrente histórica, mas apesar da temática política, dá bastante atenção à cultura e ao “imaginário”, estando próximo da história cultural, inclusive no uso criativo de fontes como literatura, teatro e iconografia, além das fontes mais tradicionais (estatísticas, documentação oficial etc).

2. Obra:

- Trata-se de um livro de síntese e de reflexão crítica, para não especialistas escrito inicialmente (1995) para o público de língua espanhola. No capítulo inicial da obra o autor pode contar com sua própria pesquisa, apoiando-se, a partir de 1930, na bibliografia especializada. Depois de uma introdução sobre o conceito de cidadania, temos quatro capítulos:

I. Primeiros passos (1822-1930)

II. Marcha acelerada (1930-1964)

III. Passo atrás, passo adiante (1964-85)

IV. A cidadania após a redemocratização

Conclusão: A cidadania na encruzilhada

3. Estrutura do texto

Introdução: Mapa da Viagem (7-13)

- Da importância do tema cidadania após o fim da ditadura militar em 1985. (7-8); importante refletir e aprimorar a cidadania pois há a possibilidade de retrocessos.

- Sobre o conceito de cidadania (8-12)

“Inicio a discussão dizendo que o fenômeno da cidadania é complexo e historicamente definido. (...) O exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automaticamente o gozo de outros, como a segurança e o emprego. O exercício do voto não garante a existência de governos atentos aos problemas básicos da população. Dito de outra maneira: a liberdade e a participação não levam automaticamente, ou rapidamente, à resolução de problemas sociais. Isto quer dizer que a cidadania inclui várias dimensões e que algumas podem estar presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível. Mas ele tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada país e em cada momento histórico.

Tornou- se costume desdobrar a cidadania em direitos civis, políticos e sociais. O cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos. Cidadãos incompletos seriam os que possuíssem apenas alguns dos direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam não-cidadãos. Esclareço os conceitos. Direitos civis são os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Eles se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de não ser condenado sem processo legal regular. São direitos cuja garantia se baseia na existência de uma justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos. São eles que garantem as relações civilizadas entre as pessoas e a própria existência da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de toque é a liberdade individual.

É possível haver direitos civis sem direitos políticos. Estes se referem à participação do cidadão no governo da sociedade. Seu exercício é limitado a parcela da população e consiste na capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar, de ser votado. Em geral, quando se fala de direitos políticos, é do direito do voto que se está falando. Se pode haver direitos civis sem direitos políticos, o contrário não é viável. Sem os direitos civis, sobretudo a liberdade de opinião e organização, os direitos políticos, sobretudo o voto, podem existir formalmente mas ficam esvaziados de conteúdo e servem antes para justificar governos do que para representar cidadãos. Os direitos políticos têm como instituição principal os partidos e um parlamento livre e representativo. São eles que conferem legitimidade à organização política da sociedade. Sua essência é a idéia de autogoverno.

Finalmente, há os direitos sociais. Se os direitos civis garantem a vida em sociedade, se os direitos políticos garantem a participação no governo da sociedade, os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva. Eles incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria. A garantia de sua vigência depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo. Em tese eles podem existir sem os direitos civis e certamente sem os direitos políticos. Podem mesmo ser usados em substituição aos direitos políticos. Mas, na ausência de direitos civis e políticos, seu conteúdo e seu alcance tendem a ser arbitrários. Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos. A idéia central em que se baseiam é a da justiça social.

O autor que desenvolveu a distinção entre as várias dimensões de cidadania, T.H.Marshall*, sugeriu também que ela, a cidadania, se desenvolveu na Inglaterra com muita lentidão. Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no século XIX, surgiram os direitos políticos. Finalmente, os direitos sociais foram conquistados no século XX. Segundo ele, não se trata de seqüência apenas cronológica: ela é também lógica. Foi com base no exercício dos direitos civis, nas liberdades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar, de participar do governo do seu país. A participação permitiu a eleição de operários e a criação do Partido Trabalhista, que foram os responsáveis pela introdução dos direitos sociais.

Há, no entanto, uma exceção na seqüência de direitos, anotada pelo próprio Marshall. Trata-se da educação popular. Ela é definida como direito social mas tem sido historicamente um pré-requisito para a expansão dos outros direitos. Nos países em que a cidadania se desenvolveu com mais rapidez, inclusive na Inglaterra, por uma razão ou outra a educação popular foi introduzida. Foi ela que permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles. A ausência de uma população educada tem sido sempre um dos principais obstáculos à construção da cidadania civil e política.

(...) a própria cidadania, é um fenômeno histórico. (...) os caminhos são distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver também desvios e retrocessos, não previstos por Marshall. O percurso inglês foi apenas um entre outros. A França, a Alemanha, os Estados Unidos, cada país seguiu seu próprio caminho. O Brasil não é exceção. (...) houve no Brasil pelo menos duas diferenças importantes. A primeira refere-se à maior ênfase em um dos direitos, o social, em relação aos outros. A segunda refere-se à alteração na seqüência em que os direitos foram adquiridos: entre nós o social precedeu os outros. Como havia lógica na seqüência inglesa, uma alteração dessa lógica afeta a natureza da cidadania. Quando falamos de um cidadão inglês, ou norte-americano, e de um cidadão brasileiro, não estamos falando exatamente a mesma coisa.

(...) A maneira como se formaram os Estados-nação condiciona assim a construção da cidadania. Em alguns países, o Estado teve mais importância e o processo de difusão dos direitos se deu principalmente a partir da ação estatal. Em outros, ela se deveu mais à ação dos próprios cidadãos.”

*MARSHALL,T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro:Zahar,1967.

- Crise do Estado-nação e efeitos da internacionalização do sistema capitalista

- Escreve para todos que se preocupam com a democracia e querem desenvolver visão própria do problema

Capítulo I: Primeiros passos (1822-1930) (15-83)

- Engloba no mesmo período o Império e a Primeira República, pois do ponto de vista da cidadania a única alteração importante foi a Abolição (embora os ex-escravos tenham sido incorporados apenas formalmente aos direitos civis), e a mudança de regime político em 1889 teve pouca importância. Algumas características da colonização portuguesa deixaram marcas duradouras.

O peso do passado (1500-1822) (17-25)

- “Em três séculos de colonização (1500-1822), os portugueses tinham construído um enorme país dotado de unidade territorial, linguística, cultural e religiosa. Mas tinham também deixado uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado absolutista. À época da Independência, não havia cidadãos brasileiros, nem pátria brasileira.” (17-18)

- Conquista: dominação e extermínio, pela guerra, pela escravização e pela doença.

- Latifúndio monocultor e exportador de base escravista

- Mineração (a partir do s. XVII): menor volume de capital e mão de obra, ambiente urbano, menos controles sociais x maior presença da máquina repressiva e fiscal do sistema colonial è região mais propícia à rebeldia política

- Pecuária no interior do país: menos mão de obra escrava, isolamento e domínio inconteste do poder privado

- Fator mais negativo para a cidadania: a escravidão: até 1822, 3 milhões de escravos haviam sido trazidos; em 1822: em 5 milhões de pessoas, incluindo 800 mil índios, 1 milhão de escravos.

- Efetuavam todas as tarefas e quase todo mundo (até os libertos) possuía escravos.

- Índios foram dizimados: à época da colonização eram c. 4 milhões

- “Escravidão e grande propriedade não constituíam ambiente favorável à formação de futuros cidadãos”: os escravos eram considerados pela lei propriedade do senhor; os homens livres pobres eram dependentes dos grandes proprietários e estes últimos não tinham o sentido da cidadania, da igualdade de todos perante a lei, a justiça, em suas mãos, transformava-se em poder pessoal.

- “A justiça do rei tinha alcance limitado, ou porque não atingia os locais mais afastados das cidades, ou porque sofria a oposição da justiça privada dos grandes proprietários, ou porque não tinha autonomia perante as autoridades executivas, ou, finalmente, por estar sujeita à corrupção dos magistrados.” (21-22)

- Conluio e dependência pública entre autoridades e grandes proprietários, não havia, efetivamente, poder público independente que pudesse garantir a igualdade de todos perante a lei.

- Descaso pela educação primária: em 1872, meio século após a Independência, apenas 16% da população era alfabetizada; nem a Igreja Católica incentivava a leitura da Bíblia.

- Em termos de educação superior, Portugal nunca permitiu a criação de universidades, enquanto no final do período colonial havia 23 universidades na parte espanhola da América, 3 no México, tendo formado 150 mil pessoas, contra 1.242 estudantes brasileiros formados em Coimbra entre 1772 e 1872 [em um século!!]. Só após a chegada da Corte é que Portugal permitiu escolas superiores.

- Raras foram as manifestações cívicas durante a Colônia e, excetuando-se as revoltas escravas, “quase todas as outras foram conflitos entre setores dominantes ou reações de brasileiros contra o domínio colonial.”

- A revolta mais popular foi a dos Alfaiates em 1798, na Bahia, de natureza mais social e racial que política, contra a escravidão e o domínio dos brancos.

- Na revolta de 1817, em Pernambuco, percebem-se traços de uma nascente consciência de direitos sociais e políticos, em que a república era vista como o governo dos povos livres, mas não se tocava na escravidão, falava-se em patriotas (pernambucanos e não brasileiros) e não em cidadãos. Patriotismo pernambucano gerado pela luta contra os holandeses no s. XVII.

- “Chegou-se ao fim do período colonial com a grande maioria da população excluída dos direitos civis e políticos e sem a existência de um sentido de nacionalidade. No máximo, havia alguns centros urbanos dotados de uma população politicamente mais aguerrida e algum sentimento de identidade regional.” (25)

1822: os direitos políticos saem na frente (25-38)

- “A independência não introduziu mudança radical no panorama descrito. Por um lado, a herança colonial era por demais negativa; por outro, o processo de independência envolveu conflitos muito limitados.” (25-26) Foi relativamente pacífico, não houve a mobilização de grandes exércitos nem figuras de libertadores ou revoltas libertadoras chefiadas por líderes populares.

- Foi uma independência negociada entre a elite nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra, tendo D.Pedro como mediador.

- “A escolha de uma solução monárquica em vez de republicana deveu-se à convicção da elite de que só a figura de um rei poderia manter a ordem social e a união das províncias que formavam a antiga colônia.” (27) Medo da fragmentação, da agitação e violência e, sobretudo, do “haitianismo” (2/3 pop. eram mestiços)

- O povo não foi decisivo na Independência, mas o foi na renúncia do imperador em 1831, quando houve grande agitação nas ruas do Rio de Janeiro.

- O Brasil sofria influência americana, republicana, e européia, monárquica. Venceu esta última, adotando-se o modelo de uma monarquia constitucional, mas com um quarto poder, o Moderador que nomeava os ministros e dissolvia a Câmara.

- Na Constituição, em termos de direitos políticos estes eram amplos para a época: as restrições censitárias não eram significativas, analfabetos podiam votar (o que permitia a uma boa parcela da população livre participar, 13% em 1872), as eleições eram bastante frequentes (vereadores e juízes de paz eram eleitos a cada dois anos, senadores morriam e a Câmara era dissolvida com frequência [a cada 15 meses em média]). Formalmente, havia, portanto, um grande avanço em relação à situação colonial.

- Na prática: 85% eram analfabetos, mais de 90% pop. vivia em áreas rurais submetida ao controle ou influência dos grandes proprietários, enquanto nas cidades muitos eram funcionários públicos controlados pelo governo. Havia ainda a Guarda Nacional, cujos oficiais eram indicados pelo governo central entre os poderosos do município e que exerciam pressão sobre os seus comandados.

- A maior parte dos cidadãos não havia praticado o voto durante a Colônia.

- Que votava-se, votava-se, até porque havia inúmeras pressões, pois o que estava em jogo era o domínio político local. Daí as eleições serem tumultuadas e violentas (p.ex. constituição da mesa eleitoral por aclamação dentro das igrejas).

- Cabalista: “A ele cabia garantir a inclusão do maior número possível de partidários de seu chefe na lista de votantes” (33), burlando a qualificação censitária, por exemplo.

- O fósforo: “uma pessoa que se fazia passar pelo verdadeiro votante” (34), muitas vezes votava em vários locais diferentes e por vezes o absurdo é que havia disputa entre dois fósforos para representar um eleitor ou até entre o eleitor e um fósforo.

- O capanga: “Eram pessoas violentas a soldo dos chefes locais. Cabia-lhes proteger os partidários e, sobretudo, ameaçar e amedrontar os adversários, se possível evitando que comparecessem à eleição.” (34)

- Eleições ‘a bico de pena’ em que atas eleitorais eram falsificadas.

- Desta forma, o voto não era uma expressão da cidadania e sim “um ato de obediência forçada ou, na melhor das hipóteses, um ato de lealdade e gratidão” (35)

- O voto era comprado e para garantir, os votantes eram mantidos em barracões ou currais até a hora de votar.

- “O encarecimento do voto e a possibilidade de fraude generalizada levaram à crescente reação contra o voto indireto e uma campanha pela introdução do voto direto” (36), em que se culpava os votantes despreparados pela corrupção, mas, na verdade, desejava-se “baratear” a eleição: quanto menos eleitores, mas fácil seria a fraude.

- Outras formas de envolvimento dos cidadãos: serviço do juri (80 mil pessoas em 1870); a Guarda Nacional, pois transmitia aos guardas algum sentido de disciplina e de exercício de autoridade legal.

- Serviço militar no Exército e na Marinha era totalmente negativo: recrutamento violento, serviço prolongado, vida dura no quartel (incluindo castigo físico)

- Guerra do Paraguai foi importante para a criação de uma identidade nacional.

1881: Tropeço (38-45)

- Introdução do voto direto, abolindo-se a eleição primária; com isto a exigência de renda passa a 200 mil réis, proibe-se o voto do analfabeto e torna-se o voto facultativo. Lei passou a ser mais rígida na forma de demonstrar a renda. Com a exclusão dos analfabetos, 80% da população masculina foi excluída do direito de votar.

- Em 1886, votam nas eleições parlamentares pouco mais de 100 mil= 0,8% da população total; enquanto isso a tendência na Europa era de ampliação dos direitos políticos (e.g. Inglaterra: expandindo o eleitorado de 3% para 15% em 1884)

- A República manteve a principal barreira à participação, continuando a excluir os analfabetos (embora abolindo a qualificação censitária): em 1894, só 2,2%, em 1930, 5,6% e só em 1945, 13,4%.

- Mesmo no Rio de Janeiro, capital do país e com metade de alfabetizados, a participação em 1894 foi de 7.857 pessoas ou 1,3% da população x 88% pop. adulta masculina em N.York em 1888.

- Primeira República não significou grande mudança em termos da representação política. A introdução da federação levou à “formação de sólidas oligarquias estaduais, apoiadas em partidos únicos, também estaduais.” (41) Bloqueava-se qualquer tentativa de oposição política e a aliança das oligarquias dos grandes estados (sobretudo SP e MG) mantinha o controle da política nacional.

- O Coronelismo representou a aliança dos chefes políticos locais com os presidentes do estados e destes com o presidente da República; as fraudes políticas foram aperfeiçoadas, não havia eleição limpa.

- “A Câmara federal reconhecia como deputados os que apoiassem o governador e o presidente da República, e tachava os demais pretendentes de ilegítimos” (42).

- Não houve movimentos populares exigindo maior participação popular, exceto o movimento pelo voto feminino que acabou sendo introduzido após a revolução de 30 [1934?]

- O povo não sabia votar ? Equívocos em relação a isso: o aprendizado democrático é lento e gradual; quem era menos preparado: o povo ou as elites?; mesmo em outros países considerados modelos como a Inglaterra, havia corrupção, a diferença é que lá houve pressão popular pela expansão do voto; o aprendizado dos direitos políticos só poderia dar-se com a prática continuada e com a difusão da educação primária. A interrupção desta prática a partir de 1881 foi extremamente danosa para um germe de aprendizado político, retardando a incorporação dos cidadãos à vida politica.

Direitos civis só na lei (45-64)

- 3 empecilhos: escravidão, grande propriedade rural fechada à lei e Estado comprometido com o poder privado. “A escravidão só foi abolida em 1888, a grande propriedade ainda exerce seu poder em algumas áreas do país e a desprivatização do poder público é tema da agenda atual de reformas.” (45)

A escravidão (45-53)

- Os passos até a Abolição, que deu-se quando a pop. escrava era bastante reduzida (723 mil), representando apenas 5% da população total, contra 30% à época da Independência e 15% em 1873.

- Foi realmente um grande obstáculo à expansão dos direitos civis ? A escravidão era muito mais difundida (geografica e socialmente) no Brasil do que nos EUA (Sul e grandes proprietários); p.ex. seg. Kátia Mattoso, 78% dos libertos na BA possuíam escravos e até escravos possuíam escravos. Isto significa que “os valores da escravidão eram aceitos por quase toda a sociedade” (49)

- Nosso abolicionismo, ao contrário do abolicionismo anglo-saxão que baseava-se na religião (Quakers: escravidão como pecado) e na Declaração de Direitos, baseava-se na razão nacional: a escravidão era um obstáculo à formação da nação por José Bonifácio ou, segundo Joaquim Nabuco, “bloqueava o desenvolvimento das classes sociais e do mercado de trabalho, causava o crescimento exagerado do Estado e do número de funcionários públicos, falseava o governo representativo.” (51) [aqui seria bom citar o capítulo XIII de O Abolicionismo de Joaquim Nabuco]

- Não se usava com ênfase o argumento da liberdade individual, pela tradição ibérica da hierarquia, dos aspectos comunitários da vida religiosa e política, da cooperação sobre a competição e o conflito.

- Tratamento dado aos ex-escravos após a Abolição: quase ninguém se preocupou em dar-lhes educação e emprego ao contrário do que ocorreu nos EUA, em que havia 4325 escolas para libertos em 1870, incluindo a universidade de Howard, foram distribuídas terras e foi incentivado seu alistamento eleitoral. No Brasil os libertos foram abandonados à própria sorte, continuando a viver nas fazendas ou engrossando a população sem emprego fixo das grandes cidades.

- Consequências negativas para a população negra è baixa qualidade de vida: menos educação, empregos menos qualificados, menores salários, piores índices de ascensão social.

- “As consequências da escravidão não atingiram apenas os negros. Do ponto de vista que aqui nos interessa – a formação do cidadão -, a escravidão afetou tanto o escravo como o senhor. Se o escravo não desenvolvia a consciência de seus direitos civis, o senhor tampouco o fazia. O senhor não admitia os direitos dos escravos e exigia privilégios para si próprio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima. A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogância de poucos correspondem o desfavorecimento e a humilhação de muitos.” (53)

A grande propriedade (53-57)

- Ainda é uma realidade em várias regiões do país hoje em dia (como o Nordeste e áreas recém-colonizadas do Norte e Centro-Oeste)

- Até 1930 o Brasil era predominantemente agrícola: em 1920 apenas 16,6% população vivia em cidades e 70% se ocupava de atividades agrícolas.

- Na primeira década após a independência, 3 produtos eram responsáveis por quase 70% exportações: açúcar (30%), algodão (21%) e café (18%) x última década do Império: café passa para o primeiro lugar com 60%, açúcar 12% e algodão 10%, os 3 somados tendo subido para 82% do total.

- Pb da concentração da riqueza em MG e SP, maiores produtores de café e da superprodução e da enorme dependência da economia nacional, profundamente abalada em 1929: com o Crack da Bolsa de NY o preço do café caiu à metade.

- Grandes proprietários, sobretudo no Nordeste, em regiões de produção de açúcar, eram o sustentáculo do coronelismo.

- Em SP a entrada de imigrantes levou às primeiras greves de trabalhadores e ao início da divisão das grandes propriedades.

- Poder dos coronéis era menor na periferia das economias de exportação e nas áreas de pequena propriedade (e.g. sul do país) è maiores revoltas populares durante a Regência (1831-1840) e movimentos messiânicos (Canudos, Contestado, Pe. Cícero) e de banditismo durante a República.

- O coronelismo impedia a participação política por negar os direitos civis (lei do coronel), fazendo dos seus trabalhadores e dependentes verdadeiros súditos.

- “Quando o Estado se aproximava, ele o fazia dentro do acordo coronelista, pelo qual o coronel dava seu apoio político ao governador em troca da indicação de autoridades, como o delegado de polícia, o juiz, o coletor de impostos, o agente de correio, a professora primária. Graças ao controle desses cargos, o coronel podia premiar os aliados, controlar sua mão-de-obra e fugir dos impostos. Fruto dessa situação eram as figuras do ‘juiz nosso’ e do ‘delegado nosso’, expressões de uma justiça e de uma polícia postas a serviço do poder privado.” (56)

- Isso resultava na impossibilidade do exercício dos direitos civis: a justiça era privada e os direitos (de ir e vir, de propriedade, inviolabilidade do lar, proteção da honra e da integridade física, direito de manifestação) dependiam do coronel.

- “A lei, que devia ser a garantia da igualdade de todos, acima do arbítrio do governo e do poder privado, algo a ser valorizado, respeitado, mesmo venerado, tornava-se apenas instrumento de castigo, arma contra os inimigos, algo a ser usado em benefício próprio. Não havia justiça, não havia poder verdadeiramente público, não havia cidadãos civis. Nessas circunstâncias, não poderia haver cidadãos políticos. Mesmo que lhes fosse permitido votar, eles não teriam as condições necessárias para o exercício independente do direito político.” (57)

A cidadania operária (57-61)

- Lenta evolução da urbanização durante o período, concentrando-se em algumas capitais de estados. Em 1920, Rio (790 mil) e SP (579 mil) eram os dois principais centros.

- Entre 1884 e 1920: 3 milhões de imigrantes, 1,8 mi. foram para SP (60%)

- Rio (20%) e S.Paulo (31%) concentravam a mão-de-obra industrial: 275.512 operários urbanos industriais em 1920.

- Uma classe operária pequena e de formação recente: no Rio com operariado mais nacional, forte presença portuguesa e de população negra; muitos operários do Estado; em S.Paulo: maioria de imigrantes europeus (sobretudo italianos) e operariado de empresas privadas era predominante.

- No Rio havia maior diversidade de orientação havendo uma oposição entre o operário estatal (mais ligado ao governo) e o do setor não-governamental (onde havia, por exemplo, maior influência anarquista). Em S.Paulo o peso do anarquismo era muito maior e a agressividade do mov. operário também (greve geral de 1917). Mas muitas vezes os imigrantes queriam ascender e não envolver-se em movimentos grevistas.

- Repressão dos patrões e do governo: leis de expulsão de estrangeiros anarquistas, ação policial.

- Criação do PCB em 1922 (formado por ex-anarquistas)

- Movimento operário como um todo perdeu força na década de 1920, vindo a ressurgir após 1930.

- Movimento operário representou avanço do ponto de vista da cidadania (sobretudo direitos civis): “O movimento lutava por direitos básicos, como o de organizar-se, de manifestar-se, de escolher o trabalho, de fazer greve. Os operários lutaram também por uma legislação trabalhista que regulasse o horário de trabalho, o descanso semanal, as férias, e por direitos sociais como o seguro de acidentes de trabalho e aposentadoria.” (60)

- Do ponto de vista dos direitos políticos não houve grande avanço: setores menos agressivos, próximos do governo (‘amarelos’) votavam mas dentro de um espírito clientelista; os anarquistas rejeitavam a política, os partidos, o Congresso e até a idéia de pátria. Os socialistas, imprensado entre estes dois grupos, não foram bem sucedidos. Triunfaram a cooperação (‘amarelos’) ou a rejeição (anarquistas) não se forjando a cidadania política e sim a ‘estadania’, “a busca de melhorias por meio de aliança com o Estado, por meio de contato direto com os poderes públicos.” (61)

Os direitos sociais (61-64)

- Não havia assistência social pública, apenas as irmandandes religiosas oriundas do período colonial e as sociedades de auxílio mútuo, bem como as casas de misericórdia voltadas para o atendimento aos pobres.

- O governo não pensava em legislação trabalhista, na verdade, um liberalismo ortodoxo proibia ao governo interferir na regulamentação do trabalho (o que só cai com a reforma da Constituição em 1926).

- Retrocesso: a const. de 1891 retirou do Estado a obrigação de fornecer educação primária (que constava da Constituição de 1824);

- Importante foi o reconhecimento dos sindicatos rurais (1903) e urbanos (1907) como legítimos representantes dos operários.

- Durante a Primeira República a questão social (i.e. o problema operário) era “questão de polícia”

- Apenas algumas tímidas medidas no campo da legislação social foram tomadas após 1919 (Brasil assina o Tratado de Versalhes e ingressa na OIT), influenciadas também pela maior agressividade do movimento operário durante a guerra.

- Em 1919 uma lei responsabiliza os patrões pelos acidentes de trabalho. Em 1926 foi regulado o direito de férias, mas a lei não foi seguida.

- 1923: Caixa de Aposentadoria e Pensão para ferroviários, primeira medida na direção de uma assistência social. Em 1926: instituto de previdência para funcionários da União. Aos poucos o sistema de caixas expande-se para outras empresas (havia 47 Caixas, 8 mil operários contribuintes e 7 mil pensionistas ao final da Primeira República).

- No campo, apenas a relação de mínima reciprocidade com os coronéis: “Em troca do trabalho e da lealdade, o trabalhador recebia proteção contra a polícia e assistência em momentos de necessidade. Havia um entendimento implícito a respeito dessas obrigações mútuas. Esse lado das relações mascarava a exploração do trabalhador e ajuda a explicar a durabilidade do poder dos coronéis.” (64)

Cidadãos em negativo (64-75)

- Não havia povo (Couty e G.Amado) politicamente organizado, opinião pública, eleitorado esclarecido ? Duas ponderações: houve movimentos políticos indicando um início de cidadania ativa (e.g. abolicionismo sobretudo após 1887, tenentismo com seu ataque às oligarquias agrárias embora tivesse pouco envolvimento popular). 2ª. ponderação: Couty e Amado usam uma concepção estreita de cidadania, pensada em termos dos limites do sistema legal e do uso do direito do voto.

- Outras modalidades de participação, outra racionalidade popular.

- Outras formas de manifestação popular: presença nas ruas, assinatura de manifestos (1822, 8 mil pessoas assinaram manifesto contra o retorno de D.Pedro I), algumas rebeliões da Regência de caráter popular (Revolta dos Cabanos 1832 entre PE e AL; Balaiada no MA em 1838; Cabanagem no PA, 1835, vencida somente em 1840 – onde morrem 30 mil pessoas, 20% pop. da província; revolta dos malês em 1835).

- Com exceção da revolta dos escravos malês, que reclamava o direito civil da liberdade, nenhuma da outras tinha programa, mas lutava-se até a morte por valores, contra formas de injustiça.

- No Segundo Reinado as revoltas populares ganharam outro contorno: reagiam às reformas introduzidas pelo governo (e.g. 1851 contra o registro civil dos casamentos e óbitos e contra o primeiro recenseamento; em 1874 contra o recrutamento militar, durou até 1887; Quebra-quilos a partir de 1871, de início no Rio e a partir de 1874 entre pequenos proprietários no Nordeste – PB, PE, AL, RN, contra a reforma dos pesos e medidas e contra a prisão de bispos católicos, sem falar na lei do serviço militar)

- Durante a República, Canudos (Conselheiro havia destruído listas de novos impostos decretados pela República) e Contestado [PR-SC, 1912-15]

- Protestos no R.Janeiro: Revolta do Vintém em 1880 (5 mil x polícia por 3 dias) e muitas outras contra a má qualidade dos serviços públicos (transporte, iluminação, água); Revolta da Vacina 1904;

- Conclusão a partir destas revoltas populares a partir do Segundo Reinado:

“apesar de não participar da política oficial, de não votar, ou de não ter consciência clara do sentido do voto, a população tinha alguma noção sobre os direitos dos cidadãos e deveres do Estado. O Estado era aceito por esses cidadãos, desde que não violasse um pacto implícito de não interferir em sua vida privada, de não desrespeitar seus valores, sobretudo religiosos. Tais pessoas não podiam ser consideradas politicamente apáticas. (...) eram, é verdade, movimentos reativos e não propositivos. Reagia-se a medidas racionalizadoras ou secularizadoras do governo. Mas havia nesses rebeldes um esboço de cidadão, mesmo que em negativo. ” (75)

Sentimento nacional (76-83)

- Havia sentimento nacional, de ser brasileiro ?

- Na Colônia e mesmo após a independência, não, o patriotismo era, no máximo, provincial (Revolta da Confederação do Equador em 1824 e revoltas regenciais com tendências separatistas: Sabinada, Cabanagem e Farroupilha).

- “Foram as lutas contra inimigos estrangeiros que criaram alguma identidade” (78): lutas contra os holandeses no s. XVII deu forte identidade aos pernambucanos (mas não aos brasileiros) e, sobretudo, a Guerra do Paraguai (1865-70) que mobilizou 135 mil soldados provenientes de diversas províncias. Aqui tem início um sentimento de pátria que começa a encarnar-se na bandeira, no hino, em cartuns, em poesia e canções populares. Mas a própria Guerra do Paraguai, depois de um tempo, tornou-se um peso para a população.

- A Proclamação da República não teve participação popular e não contribuíu para o fortalecimento de um sentimento nacional, pelo contrário, a descentralização levou ao fortalecimento das lealdades provinciais. A maioria dos movimentos populares (e.g. Canudos) tiveram características anti-republicanas e às vezes simpatias monárquicas (pop. pobre e negra do Rio).

- Republicanos tentaram legitimar o regime pela manipulação de símbolos patrióticos e pela criação de uma galeria de heróis republicanos [só Tiradentes pegou, ver A formação das almas] , mas isso não deu certo e símbolos monárquicos (como o hino nacional e a bandeira) tiveram que ser mantidos ou levemente modificados.

Conclusão:

“Pode-se concluir, então, que até 1930 não havia povo organizado politicamente nem sentimento nacional consolidado. A participação na política nacional, inclusive nos grandes acontecimentos, era limitada a pequenos grupos. A grande maioria do povo tinha com o governo uma relação de distância, de suspeita, quando não de aberto antagonismo. Quando o povo agia politicamente, em geral o fazia como reação ao que considerava arbítrio das autoridades. Era uma cidadania em negativo, se se pode dizer assim. O povo não tinha lugar no sistema político, seja no Império, seja na República. O Brasil era ainda para ele uma realidade abstrata. Aos grandes acontecimentos políticos nacionais, ele assistia, não como bestializado, mas como curioso, desconfiado, temeroso, talvez um tanto divertido.” (83)

  1. Objetivo do texto

“a falta de perspectiva de melhoras importantes a curto prazo, inclusive por motivos que têm a ver com a crescente dependência do país em relação à ordem econômica internacional, é fator inquietante, não apenas pelo sofrimento humano que representa de imediato como, a médio prazo, pela possível tentação que pode gerar de soluções que signifiquem retrocesso em conquistas já feitas. É importante, então, refletir sobre o problema da cidadania, sobre seu significado, sua evolução histórica e suas perspectivas. Será exercício adequado para o momento de passagem dos 500 anos da conquista desta terra pelos portugueses” (8)

(...)

“Não ofereço receita de cidadania. Também não escrevo para especialistas. Faço convite a todos os que se preocupam com a democracia para uma viagem pelos caminhos tortuosos que a cidadania tem seguido no Brasil. Seguindo-lhe o percurso, o eventual companheiro ou companheira de jornada poderá desenvolver visão própria do problema. Ao fazê-lo, estará exercendo sua cidadania.”

  1. Palavras-chave

Cidadania – Brasil – História

Democracia – Brasil – História

Brasil – Política e governo

  1. Métodos

- O autor analisa a questão da cidadania no Brasil em termos do desenvolvimento histórico, confrontando-o com um modelo (direitos civis, políticos e sociais). Além da síntese e da reflexão bastante crítica, sempre lança mão de comparações (com a América espanhola, com os EUA, com a Inglaterra ou a Europa em geral).

  1. Fontes utilizadas

- As mais variadas possíveis, com algum destaque para as estatísticas, por se tratar de um trabalho de síntese.

  1. Conclusões do texto

- A cidadania em negativo (ver p.83)

  1. Questões e críticas


  1. Outras leituras recomendadas

- Os outros livros de J.Murilo, sobretudo Os Bestializados e A Formação das Almas;