terça-feira, 14 de outubro de 2008

Dialética da carioquice

Oi, pessoal, conforme combinado, eis o artigo (em versão preliminar) que vou apresentar em Manaus (se os deuses permitirem).
um abraço,
Alvito

Em homenagem a Maria Lúcia Montes, minha amada mestra

Com tanto pau no mato... notas para uma dialética da carioquice

Marcos Alvito (UFF)

Resumo:

O humor carioca, uma arte sutil e irônica manejada de forma crítica pelas classes populares, pode ser considerado o maior patrimônio imaterial da cidade do Rio de Janeiro. Utilizando a música como fonte privilegiada, desde as canções entoadas pelos escravos durante o trabalho nas fazendas de café até os sambas de partido-alto, buscamos investigar as raízes históricas daquilo que Vinicius de Moraes definia como “um estado de espírito”. Um estado de espírito marcado pelo “riso festivo” (Soihet, 1998) dirigido sobretudo contra as autoridades, a hierarquia social e, por último, mas não menos importante, o preconceito racial.

“Com tanto pau no mato/ embaúba é coronel”. Assim cantavam os escravos das fazendas de café do Vale do Paraíba enquanto trabalhavam debaixo do sol quente e do olhar atento dos feitores. Este jongo, recolhido no final da década de 1940 pelo historiador norte-americano Stanley Stein (1990) junto a ex-escravos de Vassouras, contém uma crítica sarcástica ao senhor de escravos condensada em apenas dois versos. É o que nos ensina outro historiador norte-americano, Robert Slenes (2008), em um livro lançado recentemente. O jongo precisa ser decifrado ou, em linguagem nativa, que faria Geertz alegrar-se,“desatado”. A teia de significados tem sua chave, é claro, na embaúba. Borges Ribeiro deu o pontapé inicial, observando que a embaúba era uma árvore alta e imponente, mas cuja madeira era imprestável. Mais do que isso: a embaúba era conhecida como “árvore da preguiça”, porque era preferida deste animal. Mas este é apenas o significado mais óbvio do jongo: o coronel, apesar de toda a sua arrogância e a despeito da aparência imponente, “não presta e é preguiçoso”. Mas a interpretação de Slenes vai bem mais além. Notando que a maioria dos escravos era proveniente da África centro-ocidental e que havia uma enorme proporção de africanos entre os escravos do Vale do Paraíba, ele formula a hipótese de que este jongo tivesse outros significados, mais profundos e decifrados-desatados somente pelos negros. Ensina Slenes (2008:132-133)

“Na área cultural kongo, homens (e ancestrais) de grande valia eram rotineiramente identificados com árvores de madeira de lei; assim, por contraste, homens moralmente fracos, mesmo que poderosos, facilmente poderiam ser comparados a paus de polpa mole. Chamar o senhor de ‘embaúba’, portanto, era denunciá-lo como impostor ou, pior, como ‘feiticeiro’, alguém que ganhou riqueza e proeminência às custas dos outros.”

A permanência deste saber africano, deste valor simbólico atribuído a certos tipos de árvore pode ser atestado entre algumas das nossas mais importantes escolas de samba, herdeiras e continuadoras deste patrimônio imaterial. A Portela, conforme me ensinou Seu Marinho, membro da Velha Guarda, nasceu e cresceu à sombra de uma jaqueira:

“Era uma quadra, era mais ou menos a escola era ali, e ali naquele canto ali tinha uma jaqueira, e era aberto; aqui era um muro com umas cercas de ripa; aqui no fundo, depois que se fez um barraco, que servia de sede onde se colocava os troféus da Portela. Mas isso tudo aqui era aberto.”

Décadas depois da jaqueira ter sido cortada para a construção da Portelinha, a primeira, ou melhor, a segunda sede da escola, Seu Marinho e outros membros da Velha Guarda ainda eram capazes de visualizar a jaqueira, cuja derrubada lamentavam:

(Seu Marinho) “Até hoje, foi necessário, foi, mas até hoje eu olho prali, parece que eu tou vendo a jaqueira...”

(Seu Vieira): “Cheia de luz, toda enfeitada...”

(Seu Marinho)“No dia do ensaio, a jaqueira toda iluminada...”

Na parede da velha quadra, há uma inscrição reveladora: “Se o samba deu frutos, nós plantamos a semente – Velha Guarda da Portela”. Slenes nos ensina que o jongo era cantado sobretudo para os anciãos africanos, respeitados e temidos na senzala, eram a macota. E como eu haveria de esquecer o ensaio da Portela, em que os membros Seu Marinho e seus companheiros ficavam na mesa mais próxima da quadra e que só foi iniciado depois que o mestre-sala e a porta-bandeira trouxeram a bandeira azul e branca para ser devidamente beijada (e abençoada) pelos anciãos da Velha Guarda?

Quem fala de Portela, não pode deixar de falar da Mangueira e nem do Salgueiro, duas escolas de samba que tomam o nome de árvores frondosas e protetoras escolhidas para representar comunidades em que os afro-descendentes ainda hoje são maioria. Poderíamos multiplicar os exemplos: os fundadores do Cacique de Ramos, um dos mais conhecidos e tradicionais blocos de carnaval do Rio, enfatizaram o fato de que a agremiação foi fundada à sombra de uma árvore (Coutinho, ) . No caso da Mangueira, há um samba que compara a escola a um jequitibá, uma árvore de tronco grosso e alto e que, ao contrário da embaúba, é madeira boa, símbolo de força e autoridade:

“Madeira de dar em doido é Jequitibá

Deixa a Mangueira passar

(...)

Ô, ô, ô, ô, ô, o Jequitibá do samba chegou”

Na mesma música, de autoria de um sugestivo José Ramos, a escola é uma “floresta de sambistas”, “onde o Jequitibá nasceu” e “ficou” mesmo que tenha sido queimado pelo “fogo”, tombado pelo “vento” e atacado pelo “machado”. Mas o jequitibá, além de resistir, é uma arma, uma “madeira de dar em doido”, em suma, um meio de crítica. Sem dúvida a música de José Ramos está sintetizando a história da repressão às manifestações culturais afro-brasileiras, sobretudo no que diz respeito ao samba. Este é, no dizer de Muniz Sodré (1998:59)

“o meio e o lugar de expressão de opiniões, fantasias e frustrações, de continuidade de uma fala (negra) que resiste à sua expropriação cultural. (...) selvagem [grifo do autor] com relação à ideologia produtiva dominante, embora cada canção resulte trabalhada como uma jóia: ritmo e melodia caprichados, sutis, às vezes bastante eruditos.”

A repressão, todavia, não é tudo, Foucault alertava que o poder, mais do que reprimir, produz. Quando na década de 1930 a perspectiva elitista e racista da República Velha foi substituída pela “ideologia da mestiçagem”, o samba foi revalorizado como a música brasileira por excelência (Vianna, 1995) . Mas esta aceitação do samba teve seu preço: nada mais de louvar a malandragem, a figura do trabalhador honesto e ordeiro deve substituir “o vadio” que na música de Wilson Batista orgulhava-se da sua condição despreocupada, “lenço no pescoço, navalha no bolso”, a passar pelas ruas “gingando”, provocando e desafiando. Noel Rosa, que podia até não ser malandro mas não era bobo, logo percebeu que a maré havia virado e alertou para o fato de que “malandro é palavra derrotista”, aconselhando Wilson Batista a guardar o lenço e “jogar fora a navalha”. Tudo para que “escapes da polícia” (Dantas, 2004: 66-71).

Apesar disso ter dado início à polêmica musical mais famosa da nossa música popular, com Wilson e Noel trocando sambas e provocações cada vez mais pesadas, Wilson entendeu a mensagem. E no melhor espírito jongueiro, começou a compor sambas que aparentemente enquadrados na propaganda trabalhista, na verdade zombavam dos “otários”. No caso, os tolos eram não somente aqueles que se dedicavam com afinco a uma inútil labuta cotidiana mas sobretudo as autoridades, ludibriadas pela poética malandra de Wilson Batista. Para começar, há o famoso verso de “O Bonde de São Januário” (1940). Na superfície esta música é um verdadeiro hino ao operário que pega o bonde para ir trabalhar, além de se referir ao estádio de futebol onde Getúlio anualmente se dirigia à classe trabalhadora para anunciar as novas “dádivas” do trabalhismo (Gomes:1994). Acontece que nas rodas de samba Wilson trocava o verso por outro: ao invés de “O bonde de São Januário leva mais um operário, sou eu que vou trabalhar”, o que se cantava pela cidade era “O bonde de São Januário leva mais um português otário pra ver o Vasco apanhar”. Wilson, rubro-negro ardoroso, espicaçava o “freguês” habitual do seu (nosso) Flamengo, ao mesmo tempo fazendo pouco da letra oficial feita somente para agradar às autoridades. Este procedimento, na verdade, repetia o mesmo “drible” dado por Donga, autor do primeiro samba gravado, cuja letra oficial dizia que “o chefe da folia” tinha mandado avisar pelo telefone que havia uma roleta para se jogar na rua da Carioca, embora a letra verdadeira apontasse o próprio “chefe da polícia” como autor da mensagem, sublinhando a “promiscuidade” entre as autoridades policiais e os “criminosos” que elas supostamente deveriam reprimir, uma contradição que persiste até hoje e parece mais resistente que um jequitibá. Trocar um verso foi também a solução adotada pelo compositor portelense Norival Reis: quando os ferozes censores da ditadura militar vetaram “o negro diz tudo que lhe vai no ser”, do antológico samba-enredo “Ilú-Aiê” (1974), Norival não se fez de rogado, mudou para “o negro diz tudo que pode dizer”. Com isto, ironizava a atuação da censura, “dando um tapa sem usar a mão” como ele gostava de dizer.

Mas Wilson, como um verdadeiro continuador dos jongueiros submetidos à dura rotina do trabalho escravidão, foi ainda mais longe do que meramente trocar um verso, fez músicas inteiras em que o trabalhador é colocado no centro da cena e é ilusoriamente exaltado. Veja-se (e ouça-se) esta obra-prima da carioquice, o samba “Oh! Seu Oscar”, também de 1940:

“Cheguei cansado do trabalho/ logo a vizinha me chamou/ Oh! Seu Oscar/ tá fazendo meia-hora/ que a sua mulher foi embora/ e um bilhete deixou/ o bilhete assim dizia/ ‘Não posso mais, eu quero é viver na orgia”

O trabalhador vem cansado do “batente” para descobrir que a mulher o abandonou por preferir “a orgia”, a vida boêmia que continuava a existir e a exercer seu apelo irresistível. Aqui também há um nó a ser desatado: “Oscar”, na gíria da malandragem carioca, era o mesmo que “otário”. Sendo assim, o lamento da segunda parte do samba é de uma ironia poderosa:

“Fiz tudo para ver seu bem-estar/ até no cais do porto eu fui parar/ martirizando o meu corpo noite/ mas tudo em vão/ ela é da orgia/ é, parei...”

O trabalhador da música é exemplar: não mede sacrifícios pelo “bem-estar” da companheira, aceitando até mesmo o trabalho pesado da estiva. Mas isso permite a Wilson criticar o trabalho enquanto martírio, sofrimento, um lugar indigno de ser frequentado por um malandro (“até no cais do porto eu fui parar”). Ademais, essa tentativa de “reabilitação” seria inútil, pois quem é malandro nunca vai virar trabalhador (“ela é da orgia”) e o melhor a fazer é parar de com este esforço improdutivo (“é, parei...”). Os censores do Estado-Novo, à semelhança dos seus colegas da ditadura militar, não entenderam nada, como se fossem marcadores de Garrincha até hoje procurando a bola.

Em duas outras músicas, Wilson vai novamente lançar mão da figura feminina para subverter o discurso oficial. “Sambei 24 horas”, a primeira delas, parece ser uma continuação de “Seu Oscar”, pois trata na primeira pessoa de uma mulher que samba um dia inteiro em Madureira e depois pede ao companheiro que a perdôe e “abra a porta do chateau”, palavra francesa que significa castelo e forma carinhosa e irônica de se referir a um barraco na favela que, apesar da precariedade, era um lar. Aqui o “marido” aparece novamente como uma figura respeitável, que não foi ao samba, mas também como o otário que foi abandonado por sua mulher, mesmo que somente por um dia,.

Em “Inimigo do Batente”, invertem-se os papéis, embora o discurso seja novamente de autoria de uma mulher. Ela vive a trabalhar duro, está “se desmilinguindo igual a sabão na mão da lavadeira”, , sendo explorada por um marido que foge da atividade produtiva feito o diabo da cruz, abandonando em menos de um dia os trabalhos que ela arranja para ele (“Se eu lhe arranjo um trabalho/ ele vai de manhã/ de tarde pede as contas”). A mulher fica desesperada (“Eu já não posso mais/ a minha vida não é de brincadeira”), mas o malandro que a explora nem se preocupa e diz a ela com ironia que está esperando “ser presidente/ do sindicato/ dos inimigos do batente”. É outra obra-prima da ironia, a criticar não somente o trabalho, comparado a dar “murro em faca de ponta”, mas por ousar até um ataque aos sindicatos controlados por Getúlio, aos quais se contrapõe um utópico “sindicato dos inimigos do batente”. Teoricamente, “Inimigo do batente” é um lamento de uma vítima da exploração de um malandro incorrigível, cuja existência, todavia, põe em cheque o sucesso da política trabalhista.

Outros sambistas perceberam essa brecha no discurso oficial. Assis Valente, por exemplo, também em pleno Estado Novo, compõe “Recenseamento” (1940), em que comenta com fina ironia os propósitos governamentais de recensear e vigiar a população das favelas cariocas:

“Em 1940, lá no morro/ Começaram um recenseamento/ E o agente recenseador/ Esmiuçou a minha vida/ Que foi um horror”

O “agente recenseador” era, na verdade, um policial disfarçado, que queria inteirar-se de todos os detalhes, principalmente se o chefe da casa era ou não trabalhador:

“E quando viu a minha mão/ Sem aliança/ Encarou para a criança/ Que no chão dormia

E perguntou/ Se o meu moreno era decente/ E se era do batente/ Ou era da folia”

Mas a mulher, percebendo o intuito do policial, passa a descrever seu marido totalmente de acordo com a visão oficial do trabalhador perfeito, mas dando a pista, para os bons entendedores, de que ele era na verdade da “orgia”:

“Obediente sou a tudo que é da lei/ Fiquei logo sossegada/ E lhe falei então/ - O meu moreno é brasileiro/ É fuzileiro/ E é quem sai com a bandeira/ Do seu batalhão

A nossa casa/ Não tem nada de grandeza/ Nós vivemos na pobreza/ Sem dever tostão/ Tem um pandeiro, tem cuíca e tamborim / Um reco-reco, um cavaquinho e um violão.”

Percebendo que o agente “da lei” estava caindo na sua conversa, a mulher passa a elaborar um falso discurso nacionalista. Neste os “símbolos da pátria”, as benesses do novo regime e a idéia de um país unido e harmônico são impiedosamente ridicularizados:

“Fiquei pensando e comecei/ A descrever / Tudo, tudo de valor que o meu Brasil me deu...

Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo/ Um pano verde-amarelo/ Tudo isso é meu!

Tem feriado que pra mim/ vale fortuna... / A Retirada da Laguna vale um cabedal!

Tem Pernambuco, tem São Paulo e tem Bahia/ Um conjunto de harmonia que não tem rival!”

Ela fica “pensando” porque está claramente inventando uma mentira. A bandeira nacional é chamada de “pano verde-amarelo”. A única coisa que o Brasil deu foi “um céu azul” e o que interessa é o “feriado” (quando não se trabalha), mesmo que se refira a um episódio da Guerra do Paraguai que não tem a menor relação com as numerosas datas oficiais do Estado Novo. Até mesmo a menção a São Paulo é irônica, já que poucos anos antes os paulistas tinham pego em armas contra Getúlio. Um verdadeiro escárnio diante da massiva propaganda oficial.

Wilson Batista nasceu no interior do estado do Rio de Janeiro, em Campos e Assis Valente era baiano. Mas ambos vieram para o Rio de Janeiro e aprenderam por aqui a manejar a dialética da carioquice. Voltando aos escravos-jongueiros do Vale do Paraíba, Robert Slenes compara-os com os ex-escravos norte-americanos entrevistados na década de 1930, cuja fala seria “matreira” (canny), caracterizada, segundo o folclorista Benjamin Botkin (Slenes, 2008:112) como a arte do subterfúgio e da ironia como um meio-termo entre a submissão e a revolta.” Ou seja, a hipótese que estou perseguindo aqui é simples, como diriam os funkeiros “é papo reto”: o “espírito carioca” é fruto de um contexto histórico, a escravidão e a resistência ao processo de desumanização e violência que ela representava.

Sidney Chalhoub (1996) já chamou a atenção para a construção de uma rede de solidariedade horizontal e vertical no Rio de Janeiro da escravidão, que teria tecido uma verdadeira “cidade negra” que se contrapunha aos desejos de controle e vigilância das autoridades. Durante muito tempo a historiografia “de esquerda” tratou dos escravos de forma paternalista, vendo neles vítimas semi-passivas, incapazes de tomar consciência da sua condição de classe. Por incrível que pareça, ainda hoje parcelas do movimento negro acabam por se filiar a este pensamento quando fazem o que acreditam ser a crítica à abolição da escravidão vista como “dádiva” da Princesa Isabel. Nessa versão, os escravos recém-libertados não teriam percebido os limites da nova condição, nem tampouco o papel que as suas revoltas e a sua resistência teriam desempenhado no processo abolicionista. Daí a “heroicização” da princesa branca que hoje deveria ser trocada por Zumbi, este sim um símbolo verdadeiro da resistência negra.

Nada mais errôneo. Afinal, quando veio o 13 de maio, os escravos das fazendas do Vale do Paraíba cantaram por três dias sem parar o seguinte jongo:

“Eu pisei na pedra/ Pedra balanceou/ Mundo tava torto/ Rainha endireitou”

A pedra, nos ensina Stein (1990:302), que entrevistou ex-escravos em Vassouras, era o imperador D.Pedro II. A “pedra balanceou” refere-se “à atitude vacilante do Imperador em relação à abolição”. Rainha, obviamente, era Isabel, que “endireitou” o mundo antes injusto em que com tanto pau no mato embaúba era coronel. Mas há algo que a interpretação de Stein deixa de lado, que é o ato de pisar na pedra (“Eu pisei na pedra”). Aqui os ex-escravos podiam estar afirmando que eles foram os responsáveis (ao menos em parte) pela sua libertação. Sim a princesa é exaltada – não fazê-lo seria ingratidão, mas também é criticada, pois outro jongo da época da escravidão recolhido por Stein diz o seguinte:

“Não me deu banco pra mim sentar/ Dona Rainha me deu cama/ não me deu banco pra me sentar/ Um banco pra mim sentar/ Dona Rainha me deu cama não me/ Deu banco pra me sentar, ô iaiá”

Na sua singeleza, o jongo critica o fato de que a Abolição foi incompleta e injusta ao não prever a distribuição de terras aos ex-escravos, que agora se encontravam “livres” mas sem ter como prover a sua subsistência: “Dona Rainha me deu cama” (i.e. liberdade), mas “Não me deu banco pra me sentar” (i.e. terra). Esta, pelo menos, é a interpretação de Stein (1990:304-5), depois de travar contato com ex-escravos ainda vivos:

“Correu um boato nos primeiros dias após a abolição acerca da distribuição de pequenos terrenos aos ex-escravos, mas nada jamais se materializou, e os libertos ‘ficaram quietos’, de acordo com um deles [grifo meu]. No entanto, essa esperança não concretizada foi expressa em jongos de caxambu, disfarçados na metáfora amargurada.”

Ou seja: a gratidão diante da princesa coexistiu com a crítica e havia uma percepção muito clara dos limites do processo abolicionista. Os ex-escravos eram bastante conscientes tanto da sua condição anterior quanto dos problemas que persistiam após o 13 de maio.

Aquilo que estou chamando provisoriamente de “dialética da carioquice” continuou a ser uma arma necessária mesmo no mundo pós-abolição. Em 1916, foi criado um bloco que saía da famosa Casa da Tia Ciata e ia até a Festa da Penha (Soihet, 1998:12), que durante muito tempo foi o principal ponto de encontro dos sambistas cariocas. Os componentes usavam roupas marrons e imitavam macacos. Eles saíam cantando baixinho “Nós somos gente” e depois gritavam o nome do bloco: “Macaco é o outro!”. Estavam rebatendo uma associação estabelecida por Gobineau, o conde fajuto que escreveu o célebre ensaio sobre a desigualdade das raças, esteve no Brasil em meados do século XIX e comparou os brasileiros a macacos, reprovando a mistura de raças:

‘Salvo o imperador, não há ninguém neste deserto povoado de malandros.’ (...) ‘Uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter medo...’ (...) ‘Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto.’

Muito depois de Gobineau, o Barão do Rio Branco continuava a perfilhar as idéias racistas impedindo que negros e mulatos ingressassem no Itamaraty. Quando da sua morte, em 1912, conta a historiadora Rachel Soihet (1998:102-4), uma semana antes do Carnaval, as autoridades distribuiram um boletim à população clamando pelo adiamento da festa. O governo tomou providências recusando-se a ceder bandas de música para desfiles e bailes. A idéia era realizar o carnaval em abril. Grupos e cordões são avisados e seus diretores juram concordar com o adiamento da folia. O jornal A Noite publica a notícia de que o carnaval só iria realizar-se em abril. A memória do barão seria respeitada.

Pois bem, acontece que no dia o povo todo encheu as ruas e celebrou como nunca. E ainda aproveitou para agradecer ao falecido a oportunidade única de desfrutarem de duas festas de Momo:

“Com a morte do barão/ Tivemos dois carnavá/ Ai! Que bom, ai que gostoso! Se morresse o marechá”

Soihet (1998:12) assinala que “o recurso ao riso como instrumento de crítica revela uma prática muito antiga, que remontaria a um período da história da humanidade anterior à própria formação do Estado”. O que aconteceu no Rio de Janeiro, durante muito tempo a capital do país, onde as contradições do nosso sistema político e da ordem social brasileira sempre foram mais marcadas (Carvalho, 1989), foi o aperfeiçoamento e o refinamento da arte universal de reagir ao arbítrio com inteligência, sutileza e ironia. Afinal, ainda hoje dá vontade de cantar: “Com tanto pau no mato/ embaúba é coronel”.

BIBLIOGRAFIA:

CARVALHO,José Murilo de

(1989) Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo:Companhia das Letras. 3.ed.

CHALHOUB,Sidney

(1996) “Medo branco de almas negras: escravos libertos e republicanos no Rio de Janeiro” In: Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, Ano I, no. 1: 169-189.

DANTAS,André Vianna

(2004) Pensamento social brasileiro e canção: memórias da malandragem entre os anos 1930 e 1970. Dissertação de Mestrado em Memória Social e Documento. Rio de Janeiro: UNIRIO.

GOMES,Ângela de Castro

(1994) A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.2.ed.

SCHWARCZ,Lilia Moritz & REIS,Letícia Vidor de Souza (orgs.)

(1996) Negras imagens. São Paulo,Edusp/Estação Ciência.

SLENES,Robert N.

(2007) “’Eu venho de muito longe, eu venho cavando’: jongueiros cumba na senzala centro-africana” In: LARA,Silvia Hunold e PACHECO,Gustavo (Orgs.) Memória do Jongo: as gravações Históricas de Stanley J. Stein. Rio de Janeiro:Folha Seca; Campinas, SP: CECULT. Pp. 109-156.

SODRÉ,Muniz

(1998) Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad.

SOIHET,Rachel

(1998) A subversão pelo riso. Rio de Janeiro:FGV.

STEIN,Stanley J.

(1990) Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Entrevista:

(1999) Entrevista realizada em 25 de setembro de 1999 na Portelinha (Estrada do Portela, 446) com os diretores da Portela e membros da Velha Guarda na Porte: Diomário da Silva (Seu Marinho), 66; Luis Carlos da Silva (Seu Luis), 65; José Vieira (Seu Vieira), 74; Ismael Lopes (Seu Ismael), 75; Seu Guilherme, 66.

2 comentários:

Mário Piccarelli - Máscara disse...

Gostei muito da leitura.
Parabéns.

Mário Piccarelli - Máscara disse...
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