terça-feira, 2 de setembro de 2008

Campos Sales e a Comissão de Verificação de Poderes

“O novo surto entrópico, temido por Campos Sales, não derivava apenas de paranóia política. O próprio funcionamento da Câmara contribuía para tornar o resultado das eleições mais imponderável. Segundo a Carta de 1891, a decisão final a respeito da composição do Congresso cabia a ele próprio, através da Comissão de Verificação de Poderes. A ausência de uma justiça eleitoral autônoma fazia com que as eleições fossem controladas pelos executivos estaduais, durante as apurações, e pelo Legislativo, no reconhecimento final dos eleitos e na degola dos inimigos. Este era o coração do Legislativo, poder dotado da magia de engendrar-se a si mesmo.

O método de composição da comissão era curioso. Passadas as eleições, no início da instalação da nova Câmara, o parlamentar mais idoso entre os presumidamente eleitos ocupa a presidência da casa, nomeando cinco deputados para formar a comissão encarregada de decidir sobre a legitimidade do mandato dos demais. Feito o reconhecimento dos eleitos, procede-se a sorteio entre os deputados para escolher os encarregados de julgar as reclamações dos não eleitos. Como notou Campos Sales, ‘a questão estava assim entregue a um certificado de idade’.

A inovação política promovida pelo presidente consistiu em alterar o Regimento Interno da Câmara. O objetivo era restringir ao mesmo tempo o alto grau de aleatoriedade presente no critério de idade e reduzir o poder que a Câmara tinha sobre a sua renovação. Através de reforma do regimento, apresentada pelo líder da maioria, deputado Augusto Montenegro procedeu-se a duas mudanças:

1. Alteração no critério de escolha do Presidente da Câmara, encarregado de nortear a Comissão de Verificação de Poderes: pelo novo regimento ele será o mesmo da legislatura anterior.

2. Definição precisa do que significavam os diplomas: pelo novo texto o diploma passa a ser a ata geral da apuração da eleição, assinada pela maioria da Câmara Municipal, encarregada por lei de coordenar a apuração eleitoral.

Com o primeiro ponto, garante-se a continuidade da direção política da Câmara, pela reeleição do seu presidente. No caso em questão o cargo era ocupado pelo mineiro Vaz de Mello, que tinha por base a maior bancada, composta de 37 deputados. A docilidade da futura Câmara estava, pois, garantida, dada a proximidade entre Campos Sales e o chefe da política mineira, Silviano Brandão.

O principal significado da inovação passou desapercebido aos analistas do período. A nova origem da Comissão implicou perda de soberania do Legislativo, dada a definição atribuída aos diplomas. As eleições já vêm praticamente decididas, antes que a Comissão delibere a respeito dos reconhecimentos. Na verdade ela opera como garantia extra para impedir o acesso de inimigos ao parlamento. Na maior parte dos casos, a degola da oposição é feita na expedição dos diplomas pelas juntas apuradoras, controladas pelas situações locais. Em caso de dúvida a respeito da eleição de algum postulante, o novo modelo socorre-se da teoria da presunção: caso ocorra disputa entre candidatos que exibem diplomas e lutam pela mesma vaga, opera a ‘presunção’ a ‘favor daquele que se diz eleito pela política dominante no respectivo estado’. Os fraudulentos são os outros, os que não dispõem do apoio dos chefes estaduais e acham que apenas com o critério quantitativo do somatório de votos podem representar o eleitorado. A Câmara é a expressão de uma qualidade: a direção política dos chefes estaduais.

A legitimidade da Câmara não derivava das formalidades legais, mas da ação dos ordenadores de voto. Mandato legítimo é todo aquele que tem por origem a política oficial de seu Estado. Abre-se o caminho para carreiras políticas anódinas, tais como a do deputado Numa Pompílio de Castro, personagem impagável de Lima Barreto, frequentemente barrado na porta da Câmara, porque nem os contínuos sabiam seu nome ou lhe guardavam os traços fisionômicos: ‘... Era o deputado ideal; já se sabia de antemão a sua opinião, o seu voto e a sua presença nas sessões era fatal’.

A montagem da reforma do regimento, com suas implicações para a dinâmica dos conflitos, demandou negociação e busca de apoio político. Antecipando o padrão de articulação política que desejava impor, a negociação não foi congressual. Campos Sales dirigiu-se diretamente aos chefes estaduais mais importantes para tornar a modificação do regimento efetiva. Na rede de cumplicidade construída, a primeira peça foi representada pelo presidente de Minas Gerais, Silviano Brandão.”

Extraído de: LESSA,Renato. [1999] A invenção republicana. Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República Brasileira. Rio de Janeiro:TopBooks.2.ed.rev.pp.146-149.

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