terça-feira, 23 de setembro de 2008

A Revolta da Vacina segundo Sidney Chalhoub

A revolta da Vacina segundo S.Chalhoub

i. Resumo da hipótese de José Murilo de Carvalho: (pp.99-100)

“Já José Murilo de Carvalho argumenta que o que se viu em 1904 foi a ‘revolta fragmentada de uma sociedade fragmentada’. Em outras palavras, Carvalho procura especificar os motivos que teriam levado aos protestos, enfatizando menos o sentido mais geral de resistência ao processo de aburguesamento salientado por Sevcenko. Assim, havia setores sociais, interesses e insatisfações várias que se teriam articulado de forma complexa e contraditória nos eventos que conduziram à revolta. Após procurar relativizar a importância de uma série de fatores habitualmente apontados como fundamentais na eclosão do movimento – como a insatisfação gerada por dificuldades econômicas, ou pelas transformações urbanas radicais por que passava a cidade naquela quadra -, o autor identifica aquilo que seria o tema comum aos diversos grupos e setores sociais envolvidos nos distúrbios: haveria uma ‘justificativa moral’ para a revolta. Segundo ele, ‘No que se refere ao povo, a parte que nos interessa aqui de modo especial, a oposição adquiriu aos poucos caráter moralista [...] Buscou-se então explorar a idéia da invasão do lar e da ofensa à honra do chefe de família ausente ao se obrigarem suas filhas e mulher a se desnudarem perante estranhos. A expressão ‘messalina’ usada por Vicente de Souza na reunião do Centro deve ter tido efeito devastador.’ (p.131).”

ii. Crítica à hipótese de José Murilo de Carvalho: (p.100)

“O apoio documental para tal afirmação consiste no conteúdo de discursos proferidos por políticos influenciados pelo positivismo a platéias de operários organizados em associações ou sindicatos – o ‘Centro’ do trecho citado era o Centro das Classes Operárias. Mesmo se houvesse uma demonstração cabal de que aqueles operários específicos compartilhavam o sentido de terrorismo moral presente na fala de Souza, e se colocassem em pé de guerra devido às ‘messalinas’ de seu discurso, não acharia crível que a maioria da população engajada no quebra-quebra que se seguiu tivesse sido motivada por tal tipo de ‘justificativa moral’. O problema aqui é que Carvalho parte do pressuposto de que a ‘fragmentação social’ era uma herança inescapável do período da escravidão; sendo assim, e como não teria havido a possibilidade de ‘desenvolvimento de forte tradição artesanal’ à moda da Europa ocidental entre a classe trabalhadora carioca, então se intui que não poderia haver tradição ou experiência alguma informando os atores populares da revolta. Ou pelo menos não há esforço sistemático para entender que valores ou tradições seriam essas – ou não há nada para além do pressuposto de que o tipo burguês de obsessão com o comportamento e a honra feminina possa ser simplesmente generalizável por toda a sociedade. (...) É claro que havia na época uma insatisfação popular constante com as repetidas e cada vez mais agressivas invasões de higienistas e policiais a suas comunidades – bairros populares, cortiços, locais de cultos religiosos afro-brasileiros etc. - , mas isto é bem diferente de imaginar que arroubos retóricos como as ‘messalinas’ de Vicente de Souza pudessem ‘ter tido efeito devastador’ entre ‘o povo’, tornando-se assim importantes para a eclosão da revolta.”

iii. A hipótese de CHALHOUB: (137-139)

“havia toda uma tradição cultural e religiosa que, dependendo de contextos históricos específicos, podia transformar esculápios em agentes da cólera, ou comissários vacinadores – feiticeiros brancos? – em inoculadores de bexigas e morte. Certamente, havia motivos que os doutores não podiam ou não se esforçavam por entender no ‘horror’ à vacina registrado repetidamente em seus relatórios.”

“Sagbatá [vodu daomeano] é originalmente um termo genérico para um grupo de divindades da terra – isto é, divindades ligadas aos recursos que a natureza dá ao homem, permitindo a sua sobrevivência. A associação entre Sagbatá e epidemias de varíola é explicada em termos estritamente mitológicos. Todos precisam respeitar as terras que lhes garantem a alimentação, assim como as chuvas que as fertilizam; nada mais justo, portanto, que Sagbatá, que nutre os homens dando-lhes os grãos e cereais, os possa também castigar por suas ofensas, enviando-lhes doenças que consistem em fazer com que ‘os grãos que comem apareçam em sua pele’- flagelos tais como varíola, sarampo, escorbuto. (...) sendo uma epidemia de varíoloa o resultado de julgamento dos mais severos de Sagbatá sobre os males imperantes numa comunidade.

(...) a epidemia de varíola era uma espécie de purificação da comunidade, uma ‘limpeza’ dos males que se haviam ali acumulado; seus membros deveriam mudar de atitude e confessar suas ofensas, e os feiticeiros precisavam abandonar suas parafernálias nas encruzilhadas. Em suma, a justiça de Sagbatá não deveria ser obstaculizada por meios mágicos, nem convinha buscar outros expedientes – como a vacina (...) que criassem embaraços ao ‘Rei’ na execução do seu castigo.”

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