domingo, 24 de agosto de 2008

Esquema do texto 2: Carvalho 2001 - Introdução e capítulo 1

CARVALHO 2001 Esquema do texto

  1. Autor
  2. Obra
  3. Estrutura do texto
  4. Objetivo do texto
  5. Palavras-chave
  6. Métodos
  7. Fontes utilizadas
  8. Conclusões do texto
  9. Questões e críticas
  10. Outras leituras recomendadas

1. Autor: José Murilo de Carvalho (1939-), nascido em Minas Gerais, PhD em Ciência Política pela Universidade de Stanford; já lecionou em várias universidades estrangeiras (Londres, Oxford, Princeton, Leiden, Paris) foi prof. do IUPERJ e pesquisador da Casa de Rui Barbosa; atualmente é prof. Titular do Depto. História da UFRJ desde 1985.

Principais obras:

- A escola de minas de Ouro Preto: o peso da glória (1978)

- A construção da ordem: a elite política imperial (1980, 1996)

- Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (Companhia das Letras, 1987)

- Teatro de sombras (1988, 1996)

- A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil (Companhia das Letras, 1990)

- A cidadania no Brasil: o longo caminho (Civilização Brasileira, 2001)

O autor é um cientista político de formação, e a pesquisa histórica que desenvolveu foi sempre em torno da questão do funcionamento do sistema político brasileiro, inicialmente no período imperial e, a partir de 1987, tratando do período inicial da República. Não poderíamos dizer que esteja preso a uma determinada corrente histórica, mas apesar da temática política, dá bastante atenção à cultura e ao “imaginário”, estando próximo da história cultural, inclusive no uso criativo de fontes como literatura, teatro e iconografia, além das fontes mais tradicionais (estatísticas, documentação oficial etc).

2. Obra:

- Trata-se de um livro de síntese e de reflexão crítica, para não especialistas escrito inicialmente (1995) para o público de língua espanhola. No capítulo inicial da obra o autor pode contar com sua própria pesquisa, apoiando-se, a partir de 1930, na bibliografia especializada. Depois de uma introdução sobre o conceito de cidadania, temos quatro capítulos:

I. Primeiros passos (1822-1930)

II. Marcha acelerada (1930-1964)

III. Passo atrás, passo adiante (1964-85)

IV. A cidadania após a redemocratização

Conclusão: A cidadania na encruzilhada

3. Estrutura do texto

Introdução: Mapa da Viagem (7-13)

- Da importância do tema cidadania após o fim da ditadura militar em 1985. (7-8); importante refletir e aprimorar a cidadania pois há a possibilidade de retrocessos.

- Sobre o conceito de cidadania (8-12)

“Inicio a discussão dizendo que o fenômeno da cidadania é complexo e historicamente definido. (...) O exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automaticamente o gozo de outros, como a segurança e o emprego. O exercício do voto não garante a existência de governos atentos aos problemas básicos da população. Dito de outra maneira: a liberdade e a participação não levam automaticamente, ou rapidamente, à resolução de problemas sociais. Isto quer dizer que a cidadania inclui várias dimensões e que algumas podem estar presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível. Mas ele tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada país e em cada momento histórico.

Tornou- se costume desdobrar a cidadania em direitos civis, políticos e sociais. O cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos. Cidadãos incompletos seriam os que possuíssem apenas alguns dos direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam não-cidadãos. Esclareço os conceitos. Direitos civis são os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Eles se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de não ser condenado sem processo legal regular. São direitos cuja garantia se baseia na existência de uma justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos. São eles que garantem as relações civilizadas entre as pessoas e a própria existência da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de toque é a liberdade individual.

É possível haver direitos civis sem direitos políticos. Estes se referem à participação do cidadão no governo da sociedade. Seu exercício é limitado a parcela da população e consiste na capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar, de ser votado. Em geral, quando se fala de direitos políticos, é do direito do voto que se está falando. Se pode haver direitos civis sem direitos políticos, o contrário não é viável. Sem os direitos civis, sobretudo a liberdade de opinião e organização, os direitos políticos, sobretudo o voto, podem existir formalmente mas ficam esvaziados de conteúdo e servem antes para justificar governos do que para representar cidadãos. Os direitos políticos têm como instituição principal os partidos e um parlamento livre e representativo. São eles que conferem legitimidade à organização política da sociedade. Sua essência é a idéia de autogoverno.

Finalmente, há os direitos sociais. Se os direitos civis garantem a vida em sociedade, se os direitos políticos garantem a participação no governo da sociedade, os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva. Eles incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria. A garantia de sua vigência depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo. Em tese eles podem existir sem os direitos civis e certamente sem os direitos políticos. Podem mesmo ser usados em substituição aos direitos políticos. Mas, na ausência de direitos civis e políticos, seu conteúdo e seu alcance tendem a ser arbitrários. Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos. A idéia central em que se baseiam é a da justiça social.

O autor que desenvolveu a distinção entre as várias dimensões de cidadania, T.H.Marshall*, sugeriu também que ela, a cidadania, se desenvolveu na Inglaterra com muita lentidão. Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no século XIX, surgiram os direitos políticos. Finalmente, os direitos sociais foram conquistados no século XX. Segundo ele, não se trata de seqüência apenas cronológica: ela é também lógica. Foi com base no exercício dos direitos civis, nas liberdades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar, de participar do governo do seu país. A participação permitiu a eleição de operários e a criação do Partido Trabalhista, que foram os responsáveis pela introdução dos direitos sociais.

Há, no entanto, uma exceção na seqüência de direitos, anotada pelo próprio Marshall. Trata-se da educação popular. Ela é definida como direito social mas tem sido historicamente um pré-requisito para a expansão dos outros direitos. Nos países em que a cidadania se desenvolveu com mais rapidez, inclusive na Inglaterra, por uma razão ou outra a educação popular foi introduzida. Foi ela que permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles. A ausência de uma população educada tem sido sempre um dos principais obstáculos à construção da cidadania civil e política.

(...) a própria cidadania, é um fenômeno histórico. (...) os caminhos são distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver também desvios e retrocessos, não previstos por Marshall. O percurso inglês foi apenas um entre outros. A França, a Alemanha, os Estados Unidos, cada país seguiu seu próprio caminho. O Brasil não é exceção. (...) houve no Brasil pelo menos duas diferenças importantes. A primeira refere-se à maior ênfase em um dos direitos, o social, em relação aos outros. A segunda refere-se à alteração na seqüência em que os direitos foram adquiridos: entre nós o social precedeu os outros. Como havia lógica na seqüência inglesa, uma alteração dessa lógica afeta a natureza da cidadania. Quando falamos de um cidadão inglês, ou norte-americano, e de um cidadão brasileiro, não estamos falando exatamente a mesma coisa.

(...) A maneira como se formaram os Estados-nação condiciona assim a construção da cidadania. Em alguns países, o Estado teve mais importância e o processo de difusão dos direitos se deu principalmente a partir da ação estatal. Em outros, ela se deveu mais à ação dos próprios cidadãos.”

*MARSHALL,T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro:Zahar,1967.

- Crise do Estado-nação e efeitos da internacionalização do sistema capitalista

- Escreve para todos que se preocupam com a democracia e querem desenvolver visão própria do problema

Capítulo I: Primeiros passos (1822-1930) (15-83)

- Engloba no mesmo período o Império e a Primeira República, pois do ponto de vista da cidadania a única alteração importante foi a Abolição (embora os ex-escravos tenham sido incorporados apenas formalmente aos direitos civis), e a mudança de regime político em 1889 teve pouca importância. Algumas características da colonização portuguesa deixaram marcas duradouras.

O peso do passado (1500-1822) (17-25)

- “Em três séculos de colonização (1500-1822), os portugueses tinham construído um enorme país dotado de unidade territorial, linguística, cultural e religiosa. Mas tinham também deixado uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado absolutista. À época da Independência, não havia cidadãos brasileiros, nem pátria brasileira.” (17-18)

- Conquista: dominação e extermínio, pela guerra, pela escravização e pela doença.

- Latifúndio monocultor e exportador de base escravista

- Mineração (a partir do s. XVII): menor volume de capital e mão de obra, ambiente urbano, menos controles sociais x maior presença da máquina repressiva e fiscal do sistema colonial è região mais propícia à rebeldia política

- Pecuária no interior do país: menos mão de obra escrava, isolamento e domínio inconteste do poder privado

- Fator mais negativo para a cidadania: a escravidão: até 1822, 3 milhões de escravos haviam sido trazidos; em 1822: em 5 milhões de pessoas, incluindo 800 mil índios, 1 milhão de escravos.

- Efetuavam todas as tarefas e quase todo mundo (até os libertos) possuía escravos.

- Índios foram dizimados: à época da colonização eram c. 4 milhões

- “Escravidão e grande propriedade não constituíam ambiente favorável à formação de futuros cidadãos”: os escravos eram considerados pela lei propriedade do senhor; os homens livres pobres eram dependentes dos grandes proprietários e estes últimos não tinham o sentido da cidadania, da igualdade de todos perante a lei, a justiça, em suas mãos, transformava-se em poder pessoal.

- “A justiça do rei tinha alcance limitado, ou porque não atingia os locais mais afastados das cidades, ou porque sofria a oposição da justiça privada dos grandes proprietários, ou porque não tinha autonomia perante as autoridades executivas, ou, finalmente, por estar sujeita à corrupção dos magistrados.” (21-22)

- Conluio e dependência pública entre autoridades e grandes proprietários, não havia, efetivamente, poder público independente que pudesse garantir a igualdade de todos perante a lei.

- Descaso pela educação primária: em 1872, meio século após a Independência, apenas 16% da população era alfabetizada; nem a Igreja Católica incentivava a leitura da Bíblia.

- Em termos de educação superior, Portugal nunca permitiu a criação de universidades, enquanto no final do período colonial havia 23 universidades na parte espanhola da América, 3 no México, tendo formado 150 mil pessoas, contra 1.242 estudantes brasileiros formados em Coimbra entre 1772 e 1872 [em um século!!]. Só após a chegada da Corte é que Portugal permitiu escolas superiores.

- Raras foram as manifestações cívicas durante a Colônia e, excetuando-se as revoltas escravas, “quase todas as outras foram conflitos entre setores dominantes ou reações de brasileiros contra o domínio colonial.”

- A revolta mais popular foi a dos Alfaiates em 1798, na Bahia, de natureza mais social e racial que política, contra a escravidão e o domínio dos brancos.

- Na revolta de 1817, em Pernambuco, percebem-se traços de uma nascente consciência de direitos sociais e políticos, em que a república era vista como o governo dos povos livres, mas não se tocava na escravidão, falava-se em patriotas (pernambucanos e não brasileiros) e não em cidadãos. Patriotismo pernambucano gerado pela luta contra os holandeses no s. XVII.

- “Chegou-se ao fim do período colonial com a grande maioria da população excluída dos direitos civis e políticos e sem a existência de um sentido de nacionalidade. No máximo, havia alguns centros urbanos dotados de uma população politicamente mais aguerrida e algum sentimento de identidade regional.” (25)

1822: os direitos políticos saem na frente (25-38)

- “A independência não introduziu mudança radical no panorama descrito. Por um lado, a herança colonial era por demais negativa; por outro, o processo de independência envolveu conflitos muito limitados.” (25-26) Foi relativamente pacífico, não houve a mobilização de grandes exércitos nem figuras de libertadores ou revoltas libertadoras chefiadas por líderes populares.

- Foi uma independência negociada entre a elite nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra, tendo D.Pedro como mediador.

- “A escolha de uma solução monárquica em vez de republicana deveu-se à convicção da elite de que só a figura de um rei poderia manter a ordem social e a união das províncias que formavam a antiga colônia.” (27) Medo da fragmentação, da agitação e violência e, sobretudo, do “haitianismo” (2/3 pop. eram mestiços)

- O povo não foi decisivo na Independência, mas o foi na renúncia do imperador em 1831, quando houve grande agitação nas ruas do Rio de Janeiro.

- O Brasil sofria influência americana, republicana, e européia, monárquica. Venceu esta última, adotando-se o modelo de uma monarquia constitucional, mas com um quarto poder, o Moderador que nomeava os ministros e dissolvia a Câmara.

- Na Constituição, em termos de direitos políticos estes eram amplos para a época: as restrições censitárias não eram significativas, analfabetos podiam votar (o que permitia a uma boa parcela da população livre participar, 13% em 1872), as eleições eram bastante frequentes (vereadores e juízes de paz eram eleitos a cada dois anos, senadores morriam e a Câmara era dissolvida com frequência [a cada 15 meses em média]). Formalmente, havia, portanto, um grande avanço em relação à situação colonial.

- Na prática: 85% eram analfabetos, mais de 90% pop. vivia em áreas rurais submetida ao controle ou influência dos grandes proprietários, enquanto nas cidades muitos eram funcionários públicos controlados pelo governo. Havia ainda a Guarda Nacional, cujos oficiais eram indicados pelo governo central entre os poderosos do município e que exerciam pressão sobre os seus comandados.

- A maior parte dos cidadãos não havia praticado o voto durante a Colônia.

- Que votava-se, votava-se, até porque havia inúmeras pressões, pois o que estava em jogo era o domínio político local. Daí as eleições serem tumultuadas e violentas (p.ex. constituição da mesa eleitoral por aclamação dentro das igrejas).

- Cabalista: “A ele cabia garantir a inclusão do maior número possível de partidários de seu chefe na lista de votantes” (33), burlando a qualificação censitária, por exemplo.

- O fósforo: “uma pessoa que se fazia passar pelo verdadeiro votante” (34), muitas vezes votava em vários locais diferentes e por vezes o absurdo é que havia disputa entre dois fósforos para representar um eleitor ou até entre o eleitor e um fósforo.

- O capanga: “Eram pessoas violentas a soldo dos chefes locais. Cabia-lhes proteger os partidários e, sobretudo, ameaçar e amedrontar os adversários, se possível evitando que comparecessem à eleição.” (34)

- Eleições ‘a bico de pena’ em que atas eleitorais eram falsificadas.

- Desta forma, o voto não era uma expressão da cidadania e sim “um ato de obediência forçada ou, na melhor das hipóteses, um ato de lealdade e gratidão” (35)

- O voto era comprado e para garantir, os votantes eram mantidos em barracões ou currais até a hora de votar.

- “O encarecimento do voto e a possibilidade de fraude generalizada levaram à crescente reação contra o voto indireto e uma campanha pela introdução do voto direto” (36), em que se culpava os votantes despreparados pela corrupção, mas, na verdade, desejava-se “baratear” a eleição: quanto menos eleitores, mas fácil seria a fraude.

- Outras formas de envolvimento dos cidadãos: serviço do juri (80 mil pessoas em 1870); a Guarda Nacional, pois transmitia aos guardas algum sentido de disciplina e de exercício de autoridade legal.

- Serviço militar no Exército e na Marinha era totalmente negativo: recrutamento violento, serviço prolongado, vida dura no quartel (incluindo castigo físico)

- Guerra do Paraguai foi importante para a criação de uma identidade nacional.

1881: Tropeço (38-45)

- Introdução do voto direto, abolindo-se a eleição primária; com isto a exigência de renda passa a 200 mil réis, proibe-se o voto do analfabeto e torna-se o voto facultativo. Lei passou a ser mais rígida na forma de demonstrar a renda. Com a exclusão dos analfabetos, 80% da população masculina foi excluída do direito de votar.

- Em 1886, votam nas eleições parlamentares pouco mais de 100 mil= 0,8% da população total; enquanto isso a tendência na Europa era de ampliação dos direitos políticos (e.g. Inglaterra: expandindo o eleitorado de 3% para 15% em 1884)

- A República manteve a principal barreira à participação, continuando a excluir os analfabetos (embora abolindo a qualificação censitária): em 1894, só 2,2%, em 1930, 5,6% e só em 1945, 13,4%.

- Mesmo no Rio de Janeiro, capital do país e com metade de alfabetizados, a participação em 1894 foi de 7.857 pessoas ou 1,3% da população x 88% pop. adulta masculina em N.York em 1888.

- Primeira República não significou grande mudança em termos da representação política. A introdução da federação levou à “formação de sólidas oligarquias estaduais, apoiadas em partidos únicos, também estaduais.” (41) Bloqueava-se qualquer tentativa de oposição política e a aliança das oligarquias dos grandes estados (sobretudo SP e MG) mantinha o controle da política nacional.

- O Coronelismo representou a aliança dos chefes políticos locais com os presidentes do estados e destes com o presidente da República; as fraudes políticas foram aperfeiçoadas, não havia eleição limpa.

- “A Câmara federal reconhecia como deputados os que apoiassem o governador e o presidente da República, e tachava os demais pretendentes de ilegítimos” (42).

- Não houve movimentos populares exigindo maior participação popular, exceto o movimento pelo voto feminino que acabou sendo introduzido após a revolução de 30 [1934?]

- O povo não sabia votar ? Equívocos em relação a isso: o aprendizado democrático é lento e gradual; quem era menos preparado: o povo ou as elites?; mesmo em outros países considerados modelos como a Inglaterra, havia corrupção, a diferença é que lá houve pressão popular pela expansão do voto; o aprendizado dos direitos políticos só poderia dar-se com a prática continuada e com a difusão da educação primária. A interrupção desta prática a partir de 1881 foi extremamente danosa para um germe de aprendizado político, retardando a incorporação dos cidadãos à vida politica.

Direitos civis só na lei (45-64)

- 3 empecilhos: escravidão, grande propriedade rural fechada à lei e Estado comprometido com o poder privado. “A escravidão só foi abolida em 1888, a grande propriedade ainda exerce seu poder em algumas áreas do país e a desprivatização do poder público é tema da agenda atual de reformas.” (45)

A escravidão (45-53)

- Os passos até a Abolição, que deu-se quando a pop. escrava era bastante reduzida (723 mil), representando apenas 5% da população total, contra 30% à época da Independência e 15% em 1873.

- Foi realmente um grande obstáculo à expansão dos direitos civis ? A escravidão era muito mais difundida (geografica e socialmente) no Brasil do que nos EUA (Sul e grandes proprietários); p.ex. seg. Kátia Mattoso, 78% dos libertos na BA possuíam escravos e até escravos possuíam escravos. Isto significa que “os valores da escravidão eram aceitos por quase toda a sociedade” (49)

- Nosso abolicionismo, ao contrário do abolicionismo anglo-saxão que baseava-se na religião (Quakers: escravidão como pecado) e na Declaração de Direitos, baseava-se na razão nacional: a escravidão era um obstáculo à formação da nação por José Bonifácio ou, segundo Joaquim Nabuco, “bloqueava o desenvolvimento das classes sociais e do mercado de trabalho, causava o crescimento exagerado do Estado e do número de funcionários públicos, falseava o governo representativo.” (51) [aqui seria bom citar o capítulo XIII de O Abolicionismo de Joaquim Nabuco]

- Não se usava com ênfase o argumento da liberdade individual, pela tradição ibérica da hierarquia, dos aspectos comunitários da vida religiosa e política, da cooperação sobre a competição e o conflito.

- Tratamento dado aos ex-escravos após a Abolição: quase ninguém se preocupou em dar-lhes educação e emprego ao contrário do que ocorreu nos EUA, em que havia 4325 escolas para libertos em 1870, incluindo a universidade de Howard, foram distribuídas terras e foi incentivado seu alistamento eleitoral. No Brasil os libertos foram abandonados à própria sorte, continuando a viver nas fazendas ou engrossando a população sem emprego fixo das grandes cidades.

- Consequências negativas para a população negra è baixa qualidade de vida: menos educação, empregos menos qualificados, menores salários, piores índices de ascensão social.

- “As consequências da escravidão não atingiram apenas os negros. Do ponto de vista que aqui nos interessa – a formação do cidadão -, a escravidão afetou tanto o escravo como o senhor. Se o escravo não desenvolvia a consciência de seus direitos civis, o senhor tampouco o fazia. O senhor não admitia os direitos dos escravos e exigia privilégios para si próprio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava acima. A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis mas negada na prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogância de poucos correspondem o desfavorecimento e a humilhação de muitos.” (53)

A grande propriedade (53-57)

- Ainda é uma realidade em várias regiões do país hoje em dia (como o Nordeste e áreas recém-colonizadas do Norte e Centro-Oeste)

- Até 1930 o Brasil era predominantemente agrícola: em 1920 apenas 16,6% população vivia em cidades e 70% se ocupava de atividades agrícolas.

- Na primeira década após a independência, 3 produtos eram responsáveis por quase 70% exportações: açúcar (30%), algodão (21%) e café (18%) x última década do Império: café passa para o primeiro lugar com 60%, açúcar 12% e algodão 10%, os 3 somados tendo subido para 82% do total.

- Pb da concentração da riqueza em MG e SP, maiores produtores de café e da superprodução e da enorme dependência da economia nacional, profundamente abalada em 1929: com o Crack da Bolsa de NY o preço do café caiu à metade.

- Grandes proprietários, sobretudo no Nordeste, em regiões de produção de açúcar, eram o sustentáculo do coronelismo.

- Em SP a entrada de imigrantes levou às primeiras greves de trabalhadores e ao início da divisão das grandes propriedades.

- Poder dos coronéis era menor na periferia das economias de exportação e nas áreas de pequena propriedade (e.g. sul do país) è maiores revoltas populares durante a Regência (1831-1840) e movimentos messiânicos (Canudos, Contestado, Pe. Cícero) e de banditismo durante a República.

- O coronelismo impedia a participação política por negar os direitos civis (lei do coronel), fazendo dos seus trabalhadores e dependentes verdadeiros súditos.

- “Quando o Estado se aproximava, ele o fazia dentro do acordo coronelista, pelo qual o coronel dava seu apoio político ao governador em troca da indicação de autoridades, como o delegado de polícia, o juiz, o coletor de impostos, o agente de correio, a professora primária. Graças ao controle desses cargos, o coronel podia premiar os aliados, controlar sua mão-de-obra e fugir dos impostos. Fruto dessa situação eram as figuras do ‘juiz nosso’ e do ‘delegado nosso’, expressões de uma justiça e de uma polícia postas a serviço do poder privado.” (56)

- Isso resultava na impossibilidade do exercício dos direitos civis: a justiça era privada e os direitos (de ir e vir, de propriedade, inviolabilidade do lar, proteção da honra e da integridade física, direito de manifestação) dependiam do coronel.

- “A lei, que devia ser a garantia da igualdade de todos, acima do arbítrio do governo e do poder privado, algo a ser valorizado, respeitado, mesmo venerado, tornava-se apenas instrumento de castigo, arma contra os inimigos, algo a ser usado em benefício próprio. Não havia justiça, não havia poder verdadeiramente público, não havia cidadãos civis. Nessas circunstâncias, não poderia haver cidadãos políticos. Mesmo que lhes fosse permitido votar, eles não teriam as condições necessárias para o exercício independente do direito político.” (57)

A cidadania operária (57-61)

- Lenta evolução da urbanização durante o período, concentrando-se em algumas capitais de estados. Em 1920, Rio (790 mil) e SP (579 mil) eram os dois principais centros.

- Entre 1884 e 1920: 3 milhões de imigrantes, 1,8 mi. foram para SP (60%)

- Rio (20%) e S.Paulo (31%) concentravam a mão-de-obra industrial: 275.512 operários urbanos industriais em 1920.

- Uma classe operária pequena e de formação recente: no Rio com operariado mais nacional, forte presença portuguesa e de população negra; muitos operários do Estado; em S.Paulo: maioria de imigrantes europeus (sobretudo italianos) e operariado de empresas privadas era predominante.

- No Rio havia maior diversidade de orientação havendo uma oposição entre o operário estatal (mais ligado ao governo) e o do setor não-governamental (onde havia, por exemplo, maior influência anarquista). Em S.Paulo o peso do anarquismo era muito maior e a agressividade do mov. operário também (greve geral de 1917). Mas muitas vezes os imigrantes queriam ascender e não envolver-se em movimentos grevistas.

- Repressão dos patrões e do governo: leis de expulsão de estrangeiros anarquistas, ação policial.

- Criação do PCB em 1922 (formado por ex-anarquistas)

- Movimento operário como um todo perdeu força na década de 1920, vindo a ressurgir após 1930.

- Movimento operário representou avanço do ponto de vista da cidadania (sobretudo direitos civis): “O movimento lutava por direitos básicos, como o de organizar-se, de manifestar-se, de escolher o trabalho, de fazer greve. Os operários lutaram também por uma legislação trabalhista que regulasse o horário de trabalho, o descanso semanal, as férias, e por direitos sociais como o seguro de acidentes de trabalho e aposentadoria.” (60)

- Do ponto de vista dos direitos políticos não houve grande avanço: setores menos agressivos, próximos do governo (‘amarelos’) votavam mas dentro de um espírito clientelista; os anarquistas rejeitavam a política, os partidos, o Congresso e até a idéia de pátria. Os socialistas, imprensado entre estes dois grupos, não foram bem sucedidos. Triunfaram a cooperação (‘amarelos’) ou a rejeição (anarquistas) não se forjando a cidadania política e sim a ‘estadania’, “a busca de melhorias por meio de aliança com o Estado, por meio de contato direto com os poderes públicos.” (61)

Os direitos sociais (61-64)

- Não havia assistência social pública, apenas as irmandandes religiosas oriundas do período colonial e as sociedades de auxílio mútuo, bem como as casas de misericórdia voltadas para o atendimento aos pobres.

- O governo não pensava em legislação trabalhista, na verdade, um liberalismo ortodoxo proibia ao governo interferir na regulamentação do trabalho (o que só cai com a reforma da Constituição em 1926).

- Retrocesso: a const. de 1891 retirou do Estado a obrigação de fornecer educação primária (que constava da Constituição de 1824);

- Importante foi o reconhecimento dos sindicatos rurais (1903) e urbanos (1907) como legítimos representantes dos operários.

- Durante a Primeira República a questão social (i.e. o problema operário) era “questão de polícia”

- Apenas algumas tímidas medidas no campo da legislação social foram tomadas após 1919 (Brasil assina o Tratado de Versalhes e ingressa na OIT), influenciadas também pela maior agressividade do movimento operário durante a guerra.

- Em 1919 uma lei responsabiliza os patrões pelos acidentes de trabalho. Em 1926 foi regulado o direito de férias, mas a lei não foi seguida.

- 1923: Caixa de Aposentadoria e Pensão para ferroviários, primeira medida na direção de uma assistência social. Em 1926: instituto de previdência para funcionários da União. Aos poucos o sistema de caixas expande-se para outras empresas (havia 47 Caixas, 8 mil operários contribuintes e 7 mil pensionistas ao final da Primeira República).

- No campo, apenas a relação de mínima reciprocidade com os coronéis: “Em troca do trabalho e da lealdade, o trabalhador recebia proteção contra a polícia e assistência em momentos de necessidade. Havia um entendimento implícito a respeito dessas obrigações mútuas. Esse lado das relações mascarava a exploração do trabalhador e ajuda a explicar a durabilidade do poder dos coronéis.” (64)

Cidadãos em negativo (64-75)

- Não havia povo (Couty e G.Amado) politicamente organizado, opinião pública, eleitorado esclarecido ? Duas ponderações: houve movimentos políticos indicando um início de cidadania ativa (e.g. abolicionismo sobretudo após 1887, tenentismo com seu ataque às oligarquias agrárias embora tivesse pouco envolvimento popular). 2ª. ponderação: Couty e Amado usam uma concepção estreita de cidadania, pensada em termos dos limites do sistema legal e do uso do direito do voto.

- Outras modalidades de participação, outra racionalidade popular.

- Outras formas de manifestação popular: presença nas ruas, assinatura de manifestos (1822, 8 mil pessoas assinaram manifesto contra o retorno de D.Pedro I), algumas rebeliões da Regência de caráter popular (Revolta dos Cabanos 1832 entre PE e AL; Balaiada no MA em 1838; Cabanagem no PA, 1835, vencida somente em 1840 – onde morrem 30 mil pessoas, 20% pop. da província; revolta dos malês em 1835).

- Com exceção da revolta dos escravos malês, que reclamava o direito civil da liberdade, nenhuma da outras tinha programa, mas lutava-se até a morte por valores, contra formas de injustiça.

- No Segundo Reinado as revoltas populares ganharam outro contorno: reagiam às reformas introduzidas pelo governo (e.g. 1851 contra o registro civil dos casamentos e óbitos e contra o primeiro recenseamento; em 1874 contra o recrutamento militar, durou até 1887; Quebra-quilos a partir de 1871, de início no Rio e a partir de 1874 entre pequenos proprietários no Nordeste – PB, PE, AL, RN, contra a reforma dos pesos e medidas e contra a prisão de bispos católicos, sem falar na lei do serviço militar)

- Durante a República, Canudos (Conselheiro havia destruído listas de novos impostos decretados pela República) e Contestado [PR-SC, 1912-15]

- Protestos no R.Janeiro: Revolta do Vintém em 1880 (5 mil x polícia por 3 dias) e muitas outras contra a má qualidade dos serviços públicos (transporte, iluminação, água); Revolta da Vacina 1904;

- Conclusão a partir destas revoltas populares a partir do Segundo Reinado:

“apesar de não participar da política oficial, de não votar, ou de não ter consciência clara do sentido do voto, a população tinha alguma noção sobre os direitos dos cidadãos e deveres do Estado. O Estado era aceito por esses cidadãos, desde que não violasse um pacto implícito de não interferir em sua vida privada, de não desrespeitar seus valores, sobretudo religiosos. Tais pessoas não podiam ser consideradas politicamente apáticas. (...) eram, é verdade, movimentos reativos e não propositivos. Reagia-se a medidas racionalizadoras ou secularizadoras do governo. Mas havia nesses rebeldes um esboço de cidadão, mesmo que em negativo. ” (75)

Sentimento nacional (76-83)

- Havia sentimento nacional, de ser brasileiro ?

- Na Colônia e mesmo após a independência, não, o patriotismo era, no máximo, provincial (Revolta da Confederação do Equador em 1824 e revoltas regenciais com tendências separatistas: Sabinada, Cabanagem e Farroupilha).

- “Foram as lutas contra inimigos estrangeiros que criaram alguma identidade” (78): lutas contra os holandeses no s. XVII deu forte identidade aos pernambucanos (mas não aos brasileiros) e, sobretudo, a Guerra do Paraguai (1865-70) que mobilizou 135 mil soldados provenientes de diversas províncias. Aqui tem início um sentimento de pátria que começa a encarnar-se na bandeira, no hino, em cartuns, em poesia e canções populares. Mas a própria Guerra do Paraguai, depois de um tempo, tornou-se um peso para a população.

- A Proclamação da República não teve participação popular e não contribuíu para o fortalecimento de um sentimento nacional, pelo contrário, a descentralização levou ao fortalecimento das lealdades provinciais. A maioria dos movimentos populares (e.g. Canudos) tiveram características anti-republicanas e às vezes simpatias monárquicas (pop. pobre e negra do Rio).

- Republicanos tentaram legitimar o regime pela manipulação de símbolos patrióticos e pela criação de uma galeria de heróis republicanos [só Tiradentes pegou, ver A formação das almas] , mas isso não deu certo e símbolos monárquicos (como o hino nacional e a bandeira) tiveram que ser mantidos ou levemente modificados.

Conclusão:

“Pode-se concluir, então, que até 1930 não havia povo organizado politicamente nem sentimento nacional consolidado. A participação na política nacional, inclusive nos grandes acontecimentos, era limitada a pequenos grupos. A grande maioria do povo tinha com o governo uma relação de distância, de suspeita, quando não de aberto antagonismo. Quando o povo agia politicamente, em geral o fazia como reação ao que considerava arbítrio das autoridades. Era uma cidadania em negativo, se se pode dizer assim. O povo não tinha lugar no sistema político, seja no Império, seja na República. O Brasil era ainda para ele uma realidade abstrata. Aos grandes acontecimentos políticos nacionais, ele assistia, não como bestializado, mas como curioso, desconfiado, temeroso, talvez um tanto divertido.” (83)

  1. Objetivo do texto

“a falta de perspectiva de melhoras importantes a curto prazo, inclusive por motivos que têm a ver com a crescente dependência do país em relação à ordem econômica internacional, é fator inquietante, não apenas pelo sofrimento humano que representa de imediato como, a médio prazo, pela possível tentação que pode gerar de soluções que signifiquem retrocesso em conquistas já feitas. É importante, então, refletir sobre o problema da cidadania, sobre seu significado, sua evolução histórica e suas perspectivas. Será exercício adequado para o momento de passagem dos 500 anos da conquista desta terra pelos portugueses” (8)

(...)

“Não ofereço receita de cidadania. Também não escrevo para especialistas. Faço convite a todos os que se preocupam com a democracia para uma viagem pelos caminhos tortuosos que a cidadania tem seguido no Brasil. Seguindo-lhe o percurso, o eventual companheiro ou companheira de jornada poderá desenvolver visão própria do problema. Ao fazê-lo, estará exercendo sua cidadania.”

  1. Palavras-chave

Cidadania – Brasil – História

Democracia – Brasil – História

Brasil – Política e governo

  1. Métodos

- O autor analisa a questão da cidadania no Brasil em termos do desenvolvimento histórico, confrontando-o com um modelo (direitos civis, políticos e sociais). Além da síntese e da reflexão bastante crítica, sempre lança mão de comparações (com a América espanhola, com os EUA, com a Inglaterra ou a Europa em geral).

  1. Fontes utilizadas

- As mais variadas possíveis, com algum destaque para as estatísticas, por se tratar de um trabalho de síntese.

  1. Conclusões do texto

- A cidadania em negativo (ver p.83)

  1. Questões e críticas


  1. Outras leituras recomendadas

- Os outros livros de J.Murilo, sobretudo Os Bestializados e A Formação das Almas;

Nenhum comentário: