terça-feira, 26 de agosto de 2008

Trechos de O Abolicionismo, 1883, de Joaquim Nabuco

Texto : Trechos do capítulo XIII da obra O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco

Natureza e data do texto: Joaquim Nabuco (1849-1910) foi uma figura política das mais importantes do Império e um dos mais destacados abolicionistas da corrente moderada. Neste livro, defende a abolição por ver na escravidão um obstáculo ao desenvolvimento da nação, vendo nela a origem dos principais problemas brasileiros: demográficos, econômicos, políticos e morais. O capítulo XIII é um dos mais contundentes e nele ficam explícitas as concepções raciais (senão racistas) de um dos mais importantes abolicionistas brasileiros.

XIII - INFLUÊNCIA DA ESCRAVIDÃO SOBRE A NACIONALIDADE

“(Com a escravidão) nunca o Brasil aperfeiçoará as raças existentes”.

José Bonifácio

O Brasil, como é sabido, é um dos mais vastos países do globo, tendo uma área de mais de oito milhões de quilômetros quadrados; mas esse território em grandíssima parte nunca explorado, e, na sua porção conhecida, acha-se esparsamente povoado. A população nacional é calculada entre dez e doze milhões; não há porém base séria para se a computar, a não ser que se acredite nas listas de recenseamento apuradas em 1876, listas e apuração que espantariam a qualquer principiante de estatística. Sejam, porém, dez ou doze milhões, essa população na sua maior parte descende de escravos, e por isso a escravidão atua sobre ela como herança do berço.

Quando os primeiros africanos foram importados no Brasil, não pensaram os principais habitantes - é verdade que se o pensassem, isso não os impediria de fazê-lo, porque não tinham o patriotismo brasileiro - que preparavam para o futuro um povo composto na sua maioria de descendentes de escravos. Ainda hoje, muita gente acredita que cem ou duzentos mil chins seria um fato sem conseqüências étnicas e sociais importantes, mesmo depois de cinco ou seis gerações. O principal efeito da escravidão sobre a nossa população foi, assim, africanizá-la, saturá-la de sangue preto, como o principal efeito de qualquer empresa de imigração da China seria mongolizá-la, saturá-la de sangue amarelo.

Chamada para a escravidão, a raça negra, só pelo fato de viver e propagar-se, foi-se tornando um elemento cada vez mais considerável da população. (...) Foi essa a primeira vingança das vítimas. Cada ventre escravo dava ao senhor três ou quatro crias que ele reduzia dinheiro; essas por sua vez multiplicavam-se, e assim os vícios do sangue africano acabavam por entrar na circulação geral do país.

Se, multiplicando-se a raça negra sem nenhum do seus cruzamento, se multiplicasse a raça branca por outro lado mais rapidamente, como nos Estados Unidos, o problema das raças seria outro, muito diverso - talvez mais sério, e quem sabe se solúvel somente pela expulsão da mais fraca e inferior por incompatíveis uma com a outra; mas isso não se deu no Brasil. As duas raças misturaram-se e confundiram-se; as combinações mais variadas dos elementos de cada uma tiveram lugar, e a esses juntaram-se os de uma terceira, a dos aborígenes. Das três principais correntes de sangue que se confundiram nas nossas veias - o português, o africano e o indígena - a escravidão viciou sobretudo os dois primeiros. Temos aí um primeiro efeito sobre a população: o cruzamento dos caracteres do raça negra com os da branca, tais como se apresentam na escravidão a mistura da degradação servil de uma com a imperiosidade brutal da outra.

(...)

A população européia era insignificante para ocupar essas ilimitadas extensões de terra, cuja fecundidade a tentava. Estando a África nas mãos de Portugal, começou então o povoamento da América por negros; lançou-se, por assim dizer, uma ponte entre a África e o Brasil, pela qual passaram milhões de africanos, e estendeu-se o hábitat da raça negra das margens do Congo e do Zambeze às do São Francisco e do Paraíba do Sul.

(...)

Pretende um dos mais eminentes espíritos de Portugal que “a escravidão dos negros foi o duro preço da colonização da América, porque, sem ela, o Brasil não se teria tornado no que vemos”.(2) Isso é exato, “sem ela o Brasil não se teria tornado no que vemos”; mas esse preço quem o pagou, e está pagando, não foi Portugal, fomos nós; e esse preços a todos os respeitos é duro demais, e caro demais, para o desenvolvimento inorgânico, artificial, e extenuante que tivemos. A africanização do Brasil pela escravidão é uma nódoa que a mãe pátria imprimiu na sua própria face, na sua língua, e na sua única obra nacional verdadeiramente duradoura que conseguiu fundar. O eminente autor daquela frase é o próprio que nos descreve o que eram as carregações do tráfico:

Quando o navio chegava ao porto de destino - uma praia deserta e afastada - o carregamento desembarcava; e, à luz clara do sol dos trópicos, aparecia uma coluna de esqueletos cheios de pústulas, com o ventre protuberante, as rótulas chagadas, a pele rasgada, comidos de bichos, com o ar parvo e esgazeado dos idiotas. Muitos não se tinham em pé: tropeçavam, caíam e eram levados aos ombros como fardos.

Não é com tais elementos que se vivifica moralmente uma nação.

(...)

A história da escravidão africana na América é um abismo de degradação e miséria que se não pode sondar, e, infelizmente, essa é a história do crescimento do Brasil. No ponto a que chegamos, olhando para o passado, nós, brasileiros, descendentes ou da raça que escreveu essa triste página da humanidade, ou da raça com cujo sangue ela foi escrita, ou da fusão de uma e de outra, não devemos perder tempo a envergonhar-nos desse longo passado que não podemos lavar, dessa hereditariedade que não há como repelir. Devemos fazer convergir todos os nossos esforços para o fim de eliminar a escravidão do nosso organismo, de forma que essa fatalidade nacional diminua em nós e se transmita às gerações futuras, já mais apagada, rudimentar e atrofiada.

Muitas das influências da escravidão podem ser atribuídas à raça negra, ao seu desenvolvimento mental atrasado, aos seus instintos bárbaros ainda, às suas superstições grosseiras. A fusão do catolicismo, tal como o apresentava ao nosso povo o fanatismo dos missionários, com a feitiçaria africana, influência ativa e extensa nas camadas inferiores, intelectualmente falando, da nossa população, e que pela ama-de-leite, pelos contatos da escravidão doméstica, chegou até aos mais notáveis dos nossos homens; a ação de doenças africanas sobre a constituição física de parte do nosso povo; a corrupção da língua, das maneiras sociais. da educação e outros tantos efeitos resultantes do cruzamento com uma raça num período mais atrasado de desenvolvimento; podem ser consideradas isoladamente do cativeiro. Mas, ainda mesmo no que seja mais característico dos africanos importados, pode afirmar-se que, introduzidos no Brasil, em um período no qual não se desse o fanatismo religioso, a cobiça, independente das leis, a escassez da população aclimada, e sobretudo a escravidão, doméstica e pessoal, o cruzamento entre brancos e negros não teria sido acompanhado do abastardamento da raça mais adiantada pela mais atrasada, mas de gradual elevação da última.

Não pode, para concluir, ser objeto de dúvida que a escravidão transportou da África para o Brasil mais de dois milhões de africanos; que, pelo interesse do senhor na produção do ventre escravo, ela favoreceu quanto pôde a fecundidade das mulheres negras; que os descendentes dessa população formam pelo menos dois terços do nosso povo atual; que durante três séculos a escravidão, operando sobre milhões de indivíduos, em grande parte desse período sobre a maioria da população nacional, impediu o aparecimento regular da família nas camadas fundamentais do país; reduziu a procriação humana a um interesse venal dos senhores; manteve toda aquela massa pensante em estado puramente animal; não a alimentou, não a vestiu suficientemente; roubou-lhe a suas economias, e nunca lhe pagou os seus salários; deixou-a cobrir-se de doenças, e morrer ao abandono; tornou impossíveis para ela hábitos de previdência, de trabalho voluntário, de responsabilidade própria, de dignidade pessoal; fez dela o jogo de todas as paixões baixas, de todos os caprichos sensuais, de todas as vinditas cruéis de um outra raça;”

(...)

Fonte:

NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo : Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro da Folha de São Paulo).

Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo

Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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