terça-feira, 26 de agosto de 2008

Jongos importantes como documentos históricos acerca da condição escrava, da Abolição e de seus desdobramentos

Faixas do CD Memória do Jongo; encarte do livro Memória do Jongo: As gravações históricas de Stanley J. Stein. Vassouras, 1949. LARA,Silvia Hunold e PACHECO,Gustavo (Orgs.). Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas, SP: CECULT, 2007.pp. 177-191.

2 (027) :

Diabo de bembo* [?] [...]

Ô, [...]

Não deixou eu vestir calça, [...]

Ô, [...]

Não deixou vestir camisa, [...]

Ô, [...]

Não me deixou botar cueca, [...]

Aê, [...]

Não me deixou vestir chapéu, [...]

*Dembo: cf. Kimbundu ndembu, “potentado, autoridade superior [que tem sobas (chefes) sob sua jurisdição”; umbundu, ndembo, “mulher principal do soba, rainha”.

3 (0:20):

Tava dormindo cangoma* me chamou

Levanta povo que o cativeiro já acabou

*Cangoma (n.b. angoma, o tambor maior, de tronco escavado e de um couro só, usado no jongo-caxambu): cf. Kik.-kim. ngoma e umb. ongoma, “tambor” (...)

4(0:18):

Eu pisei na pedra* a pedra balanceou

O mundo tava torto rainha endireitou

Pisei na pedra a pedra balanceou

Mundo tava torto rainha endireitou

* Seg. Stein, Vassouras (ed. br.), p. 302: “Jongueiros recorreram aos acontecimentos de 13 de maio para inspiração, referindo-se à atitude vacilante do Imperador (‘pedra’) em relação à abolição, elogiando o ato de sua filha (‘rainha’): Eu pisei na pedra, pedra balanceou/ Mundo ‘tava torto, rainha endireitou”.

5(0:20): *

Não me deu banco pra mim sentar

Dona Rainha me deu cama,

não me deu banco pra me sentar

Um banco pra mim sentar

Dona Rainha me deu cama não me

Deu banco pra me sentar, ô iaiá

* Cf. Stein, pp. 304-5: “Correu um boato nos primeiros dias após a abolição acerca da distribuição de pequenos terrenos aos ex-escravos, mas nada jamais se materializou, e os libertos ‘ficaram quietos’, de acordo com um deles. No entanto, essa esperança não concretizada foi expressa em jongos de caxambu, disfarçados na metáfora amargurada, manifestada através da tradição africana e da servitude ao negro brasileiro: Ahi, não deu banco p’ra nos sentar/ Dona Rainha me deu cama, não deu banco p’ra me sentar”.

13(0:13): *

Ô ô, com tanto pau no mato

Embaúba é coroné

Com tanto pau no mato, ê ê

Com tanto pau no mato

Embaúba coroné

* Cf. Stein, p.248: “O jongo seguinte acerca da árvore embaúba e do coronel fazendeiro tipifica o aspecto de duplo sentido nos jongos: Com tanto pau no mato/ Embaúba é coronel. De acordo com um ex-escravo, a embaúba era uma árvore comum, inútil por ser podre por dentro. Muitos fazendeiros eram conhecidos como coronéis porque ocupavam esse posto na Guarda Nacional. Combinando os dois elementos, embaúba e coronel, os escravos produziam o superficialmente inócuo, mas sarcástico comentário.”

14(0:23): *

No tempo de cativeiro

Aturava muito desaforo

Levantava de manhã cedo

Com cara limpa levo o couro, ai

Agora quero ver o cidadão

Que grita no alto do morro

Vai-se Cristo, seu moço

Seu negro agora tá forro

*Stein, p.303: “Amargura, resignação e desforra apareceram em outro verso e refletem como os escravos se ressentiam profundamente da subserviência imposta pela autoridade do senhor: No tempo do cativeiro, aturava muito desaforo/ Eu levantava de manhã cedo, com cara limpa levo o couro. / Agora quero ver o cidadão que grita no alto do morro/ ‘Vas Christo’, seu moço, esta forro seu Negro agora”.

18(0:14):

Oi, soldado

Ai, quando é tempo de guerra

Dia inteiro tá no campo

Ou de noite sentinela, soldado

35(0:18):*

Que correntinha tão bonita,

Sá Dona, auê

Para que correntinha tá no pé,

Sá Dona

Que correntinha tão bonita

Sá Dona, auê

Para que correntinha tá no pé,

Sá Dona, auê

* Cf. Stein, p.172: “O canarinho tão bonitinho, que está preso na gaiola/ P’ra que correntinha está no pé, p’ra quê?”. Stein sugere que este jongo pode ter sido inspirado pelo trabalho em grupo de escravos tidos como “fujões” e acorrentados.

58(0:21)

Ô ô, [...], congonha*

Congonha é que mata homem, é, congonha

[...], congonha

Congonha é que mata homem, é, congonha

* Congonha: aqui, provavelmente “aguardente de cana; cachaça”.

59(0:18):

Pisei na pedra a pedra balanceou

Falou mal de rainha tá me fazendo falsidade

Pisei na pedra a pedra balanceou

Falou mal da rainha tá me fazendo falsidade

60(0:16):

Com tanta fava na horta

Canguru* tá com fome

Oi, com tanta fava na horta

Canguru tá com fome

Com tanta fava na horta

Canguru tá com fome, gente

* Canguru: cf. Kik./kim. ngulu, umb. ongulu “porco”

68(1:02) *

Pai João, Pai João

Preto não mente não

Pai João, Pai João

Preto não mente não

Sou preto véio mas não sou dessa canaia

Meu peito tem três medaia que eu ganhei no Paraguai

Quando eu fiz a guerra dos Canudo

Pra mecê no fim de tudo me chamar de Pai João

Sou preto véio mas sou um dos veterano

Que ajudou seu Floriano a ganhar Vileganhão**

Pai João, Pai João

Preto não mente não

Pai João, Pai João

Preto não mente não

Deixe de bobagem, garotagem e malandragem,

Não podes contar vantagem

Sou preto de opinião

* Eis a letra original da toada composta por Almirante e Luiz Peixoto e gravada por Gastão Fomenti: “Sou preto velho/ Mas não sou dessa canaia/ Meu peito tem três medaia/ Que ganhei no Paraguai/ Comi na faca/ Mais de trinta cangaceiro/ E o Antônio Conselheiro/ Teve quase vai-não-vai/ Pai João, Pai João/ Tás contando vantagem/ Nego não mente não/ Dexa dessas bobagem garotagem/ Que eu sou preto de coragem/ Sou preto de condição/ Sou preto velho/ Mas sou um dos veterano/ Que ajudou Fuloriano/ A tomar Vileganhão/ Sou preto velho/ Mas agora eu vou ser franco/ Eu tô com os cabelo branco/ De tanta desilusão/ Quando era moço/ Fiz a Guerra de Canudo/ Pra mecê no fim de tudo/ Me chamar de Pai João”.

** Trata-se provavelmente de uma referência a um episódio da Revolta da Armada, em 1894, quando as forças leais ao então Presidente Floriano Peixoto enfrentaram e venceram rebeldes entrincheirados na Fortaleza de Villegaignon, na Baía de Guanabara

74(2:04)

É que sabe combinar

[...] sinhá rainha é que soube combinar

Sinhá rainha é que soube combinar

Pegou na pena de ouro

E jogou no meio do mar

Treze de maio a corrente rebentou

No dia treze de maio

A corrente rebentou

A corrente rebentou

Estremeceu [...]

No coração do senhor

A pedra balanceou

Olha eu pisei na pedra

E a pedra balanceou

Pisei na pedra

E a pedra balanceou

Pois o mundo tava torto

Sinhá rainha endireitou

Ai ser peneira na panhação de café

Mas eu queria ser peneira

Na panhação de café

Na panhação de café

Pra andar dependurado

Nas cadeiras das mulher

E no tempo da escravidão

Eu queria que eu chegasse

No tempo da escravidão

Que eu chegasse

No tempo da escravidão

Eu queria ser [...]

Que eu matava o meu patrão

Liberdade foi a rainha quem me deu

Liberdade liberdade

Foi a rainha quem me deu

Ai foi a rainha quem me deu

Com sua pena de ouro

Ela mesma escreveu

Entre nós não há perigo

Tu é bom eu também sou

E entre nós não há perigo

Eu também sou

Entre nós não há perigo

Sentimento que eu tenho

De não saber mais verso antigo

Nenhum comentário: